A trave mestra do nojo e do medo


Escapando ao jugo do Império Britânico, a República Islâmica do Paquistão formou-se em 1947.

A partir dessa data cresceu de trinta e quatro milhões para cento e oitenta milhões de pessoas e é hoje uma economia em crescimento, constituindo o sexto país mais populoso do mundo.

Detém, além disso, uma das maiores forças armadas do mundo, de carácter inteiramente voluntário, aliás, a quarta maior, que tem estado entre os maiores contribuintes de tropas para as operações de manutenção de paz das Nações Unidas. É uma das potências nucleares do mundo, a seguir aos Estados Unidos, Rússia, França, Reino Unido, China e Índia, e antes da Coreia do Norte, de Israel e do Irão.
 
As terras do Paquistão são tão variadas como as suas línguas faladas, que são mais de sessenta. Desde as praias arenosas, lagunas e manguezais, na costa meridional, até às florestas temperadas; desde os desertos de Thar e do Baluchistão, aos picos gelados dos Himalaias e às montanhas brancas de que se contam mais de cem picos acima dos sete mil metros; desde as planícies férteis do Panjabe e do Sinde, às cidades populosas em que as gentes anónimas formigam; o Paquistão é atravessado de norte a sul pelo poderoso rio Indo que desce do planalto tibetano até desaguar no mar Arábico. 
 
Foi em 2009 no Paquistão que Malala Yousafzai, uma menina então com doze anos, desafiou o domínio dos Talibã no vale do Swat, escrevendo para a BBC um blogue sob pseudónimo onde narrava o dia-a-dia da província ocupada. Em 2012, com apenas quinze anos e quando entrava num autocarro escolar, Malala foi vítima de um ataque armado por parte de um grupo Talibã que a chamou pelo nome antes de disparar sobre o seu rosto e a sua cabeça.

Os Talibã, tal como muitos outros grupos radicais islâmicos, são contra a escolarização das meninas, mas este acontecimento trágico, um entre muitos que todos os dias anonimamente se repetem, gerou uma onda de solidariedade na comunidade internacional que culminou com a atribuição do Prémio Nobel da Paz a Malala.

«Vamos pegar nos nossos livros e nas nossos canetas. Estas são as nossas armas mais poderosas. Uma criança, um professor, uma caneta e um livro podem mudar o mundo.»

Foram as palavras de Malala em Julho de 2013 na Assembleia da Juventude na Organização das Nações Unidas em Nova Iorque.

Contudo, o governo do Paquistão não tem travado as perseguições religiosas e políticas cujos autores são deixados impunes pela justiça do país.

Ainda em Março de 2015, os paquistaneses cristãos estiveram de luto pelos ataques bombistas que deixaram quinze mortos e mais de oitenta feridos nas igrejas de Lahore, dois anos passados sobre o trágico ataque suicida que deixou oitenta mortos e mais de cem feridos numa igreja anglicana de Peshawar.

Abundam, por outro lado, os chamados «crimes de honra», que afectam as franjas mais vulneráveis da população e quanto aos quais o poder estatal não interfere.

Centenas de mulheres são assassinadas anualmente no Paquistão, acusadas desses crimes.

Em Lahore, Farzana Parveen, com vinte e cinco anos e grávida de três meses, foi apedrejada até à morte em plena luz do dia pelo «crime» de casar com o homem que amava, indo contra a vontade da sua família.

Foi morta por vinte homens da sua família, entre os quais o pai e os irmãos, que a agrediram com bastões e tijolos, em frente de uma multidão e de um conjunto de representantes do tribunal de Lahore.

Desta violência, que respira e dança ao deus-dará, sem freio nem escalpe, é desmesuradamente triste o teatro da crueldade. São pobres e sorvidas de qualquer alma as cenas dos crimes.

No chão de terra batida e cinzenta estão as manchas de sangue e urina e um caixote velho de transportar fruta, mais os tijolos e as pedras desfeitos. Nesse chão descarnado é que ficou o corpo encolhido que expõe um rosto negro e torturado e que se envolve no véu manchado que agora é um trapo.

Ao lado da cabeça e do rosto macerado da mulher vê-se intacta uma sapatilha brilhante, preta e rosa, com um laço vermelho, essa sapatilha da mulher caída, que ali ficou, fora do pé.

«Ser humano, que vales tu?... És só mais um que morre.»

E em redor a multidão já só parece um bando imóvel de baratas.
 
Os homens fodem com quem o corpo lhes permite, ou são, também eles, na prisão, na maldade e na guerra, violados pela boca ou pelo cu, mas as mulheres, um pouco por todo o mundo e em especial nestes regimes desiguais e repressivos, fodem com quem as compra, com quem lhes paga, com quem as alimenta, lhes bate ou simplesmente ameaça de morte.
 
Como podem continuar a receber nos corpos tais lobos, como podem continuar a parir uma tal humanidade e a dar o seu leite e o seu sangue a tais abutres?
 
Que esperança tão paradoxal e tão louca é que as sustenta, que amor transcendental ou esquizofrénico é que as impele, que não as deixa estrangular os filhos da tortura e da vergonha logo à nascença?
 
Guardam nas almas o vómito e o terror por quem lhes penetra e coloniza os corpos e assim formam de um modo perfeitamente contínuo e involuntário esta imensa trave mestra do nojo e do medo que sustenta o arco da violência no mundo, as mulheres - ou melhor, estas dolorosas mulheres impensáveis.