Que paz? Que protecção?




Como um sonho titubeante e incipiente, o sistema de protecção internacional dos direitos humanos é ainda demasiado frágil, ineficaz.

Que podemos fazer, para além de escrever cartas e participar em acções urgentes, que podemos fazer, nós, os cidadãos comuns que trabalham todos os dias para ganhar o seu tecto e o seu pão e que não dispõem de tantas horas livres, tantas como gostariam, para dedicar a causas urgentes - que podemos fazer?

Se os membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas são eles mesmos estados totalitários e opressivos, e com poder de veto, que sentido podemos dar à eficácia de tais organizações?

O sentido de um não-sentido?

Assim a Rússia e a China vetaram por duas vezes consecutivas, em 2011 e 2012, a resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas para condenar os crimes de assassínio de civis em massa pelo governo sírio de Bashar al-Assad, e, desde então, a marcha de refugiados, feridos, mutilados e cadáveres não cessou de aumentar, até hoje.

A Alemanha, o Azerbaijão, a Colômbia, os Estados Unidos, a França, Guatemala, Marrocos, o Paquistão, Portugal, o Reino Unido, o Togo, a África do Sul e a Índia, todos eles votaram a favor desta resolução que foi simplesmente vetada pela Rússia e pela China, a Rússia por causa dos seus interesses estratégicos na base militar russa de Tartus, na costa mediterrânea da Síria, e porque Damasco é um dos seus maiores compradores de armamento, e a China porque veta sistematicamente as resoluções baseadas "apenas" em motivos e causas humanitárias.

Que país sobrará para Bashar al-Assad e para a sua família, depois da guerra? Um deserto pejado de cadáveres e de poços de petróleo assaltados por gangs de extremistas?

Com que mundo ficaremos, se um chefe é livre de decapitar as mulheres e os homens e as crianças do seu povo e de passar os restantes pelo fio da navalha, desde que esteja «em sua casa»?

É este o estado de barbárie em que nos encontramos, meu caro Extraterrestre.



Bashar al-Assad (1965-)

Porque é que a fotografia de Omran Daqneesh corre o mundo?



Eis os factos.

Desde o final da Segunda Grande Guerra Mundial que não havia tanta gente em busca de refúgio.

Porque é que a fotografia de Omran Daqneesh corre o mundo?

Mais de quatrocentas e setenta mil pessoas morreram na guerra civil da Síria. Destas, cerca de setenta mil morreram devido à falta de mantimentos, cuidados médicos, água limpa ou abrigo. Mas o número de feridos e mutilados chega quase a dois milhões de pessoas.

Porque é que a fotografia de Omran Daqneesh corre o mundo?

Do outro lado da morte, quantos olhos vitrificados agora nos olham a nós que talvez sejamos hoje os falsos vivos?

Haverá terra onde colocar os pés sem ser sobre os corpos enterrados da infâmia, da tortura, da vergonha e da miséria de sermos humanos?

Porque é que a fotografia de Omran Daqneesh corre o mundo?

Será porque está vivo e inteiro o menino imóvel e porque o horror é ainda suportável e se apresenta naquele limite paradoxal em que pode ser olhado?

Seríamos capazes de olhar para Omran Daqneesh se lhe faltasse uma perna, um braço, um pé, um olho, uma mão, uma cabeça, como a tantos, como a tantos, tantos outros?

Porque é que a fotografia de Omran Daqneesh corre o mundo?

A guerra na Síria grita-nos de um modo insuportável como falham as instituições para proteger os direitos daqueles que buscam asilo e para assegurar a aplicação da lei internacional.

Porque é que a fotografia de Omran Daqneesh corre o mundo?

Porque o olhar da pequena criança é como o de um velho que já fez a travessia da morte e do desespero, tantas vezes, mas tantas, tantas, que ficou para lá do desencanto e da dor, para lá da sensibilidade?

Porque o silêncio do seu corpo nos estende aos pés a infinitude do deserto que a sua alma viu e conheceu, e que nós sabemos que existe, e que não podemos esquecer?

Porque é visível, mas tão visível, que a consciência atingiu aquele ponto mais agudo que a faz balançar no extremo do pontão que se abre para a loucura, fazendo oscilar, de um modo tão insuportável quanto injusto, a pequena criança à beira do abismo?

Ou porque a poeira branca que cobre todo o menino, desde os cabelos até aos pezitos nus, é tão irreal que nos fala de um outro mundo, fala-nos de um caos impossível como que de fantasmas e de ruínas que habitam só um remanescente, um pequeno resto remanescente da nossa realidade?

PORQUE É QUE A FOTOGRAFIA DE OMRAN DAQNEESH CORRE O MUNDO?

Porque o banco moderno e cor-de-laranja da ambulância está tão limpo e tão novo como as paredes costumeiras do nosso confortável quotidiano e não se percebe como se acolheu nele o pequeno menino transfigurado, este pedaço imóvel do caos, este disparo vivo de um gémeo e alucinado desespero?

Teremos o direito de olhar para ele, para o pequeno e inocente Omran Daqneesh?

Se todos os homens e mulheres se ajoelhassem ou soçobrassem de mãos unidas junto ao peito em nome dos mortos absurdos e da dor ignóbil e da vergonha e do sangue e da carne desmembrada que a guerra infamemente produz já não haveria mãos que sobrassem para lançar bombas sobre os inocentes desta terra através dos céus.


Omran Daqneesh, Aleppo, 17 de Agosto de 2016