A trave mestra do nojo e do medo


Escapando ao jugo do Império Britânico, a República Islâmica do Paquistão formou-se em 1947.

A partir dessa data cresceu de trinta e quatro milhões para cento e oitenta milhões de pessoas e é hoje uma economia em crescimento, constituindo o sexto país mais populoso do mundo.

Detém, além disso, uma das maiores forças armadas do mundo, de carácter inteiramente voluntário, aliás, a quarta maior, que tem estado entre os maiores contribuintes de tropas para as operações de manutenção de paz das Nações Unidas. É uma das potências nucleares do mundo, a seguir aos Estados Unidos, Rússia, França, Reino Unido, China e Índia, e antes da Coreia do Norte, de Israel e do Irão.
 
As terras do Paquistão são tão variadas como as suas línguas faladas, que são mais de sessenta. Desde as praias arenosas, lagunas e manguezais, na costa meridional, até às florestas temperadas; desde os desertos de Thar e do Baluchistão, aos picos gelados dos Himalaias e às montanhas brancas de que se contam mais de cem picos acima dos sete mil metros; desde as planícies férteis do Panjabe e do Sinde, às cidades populosas em que as gentes anónimas formigam; o Paquistão é atravessado de norte a sul pelo poderoso rio Indo que desce do planalto tibetano até desaguar no mar Arábico. 
 
Foi em 2009 no Paquistão que Malala Yousafzai, uma menina então com doze anos, desafiou o domínio dos Talibã no vale do Swat, escrevendo para a BBC um blogue sob pseudónimo onde narrava o dia-a-dia da província ocupada. Em 2012, com apenas quinze anos e quando entrava num autocarro escolar, Malala foi vítima de um ataque armado por parte de um grupo Talibã que a chamou pelo nome antes de disparar sobre o seu rosto e a sua cabeça.

Os Talibã, tal como muitos outros grupos radicais islâmicos, são contra a escolarização das meninas, mas este acontecimento trágico, um entre muitos que todos os dias anonimamente se repetem, gerou uma onda de solidariedade na comunidade internacional que culminou com a atribuição do Prémio Nobel da Paz a Malala.

«Vamos pegar nos nossos livros e nas nossos canetas. Estas são as nossas armas mais poderosas. Uma criança, um professor, uma caneta e um livro podem mudar o mundo.»

Foram as palavras de Malala em Julho de 2013 na Assembleia da Juventude na Organização das Nações Unidas em Nova Iorque.

Contudo, o governo do Paquistão não tem travado as perseguições religiosas e políticas cujos autores são deixados impunes pela justiça do país.

Ainda em Março de 2015, os paquistaneses cristãos estiveram de luto pelos ataques bombistas que deixaram quinze mortos e mais de oitenta feridos nas igrejas de Lahore, dois anos passados sobre o trágico ataque suicida que deixou oitenta mortos e mais de cem feridos numa igreja anglicana de Peshawar.

Abundam, por outro lado, os chamados «crimes de honra», que afectam as franjas mais vulneráveis da população e quanto aos quais o poder estatal não interfere.

Centenas de mulheres são assassinadas anualmente no Paquistão, acusadas desses crimes.

Em Lahore, Farzana Parveen, com vinte e cinco anos e grávida de três meses, foi apedrejada até à morte em plena luz do dia pelo «crime» de casar com o homem que amava, indo contra a vontade da sua família.

Foi morta por vinte homens da sua família, entre os quais o pai e os irmãos, que a agrediram com bastões e tijolos, em frente de uma multidão e de um conjunto de representantes do tribunal de Lahore.

Desta violência, que respira e dança ao deus-dará, sem freio nem escalpe, é desmesuradamente triste o teatro da crueldade. São pobres e sorvidas de qualquer alma as cenas dos crimes.

No chão de terra batida e cinzenta estão as manchas de sangue e urina e um caixote velho de transportar fruta, mais os tijolos e as pedras desfeitos. Nesse chão descarnado é que ficou o corpo encolhido que expõe um rosto negro e torturado e que se envolve no véu manchado que agora é um trapo.

Ao lado da cabeça e do rosto macerado da mulher vê-se intacta uma sapatilha brilhante, preta e rosa, com um laço vermelho, essa sapatilha da mulher caída, que ali ficou, fora do pé.

«Ser humano, que vales tu?... És só mais um que morre.»

E em redor a multidão já só parece um bando imóvel de baratas.
 
Os homens fodem com quem o corpo lhes permite, ou são, também eles, na prisão, na maldade e na guerra, violados pela boca ou pelo cu, mas as mulheres, um pouco por todo o mundo e em especial nestes regimes desiguais e repressivos, fodem com quem as compra, com quem lhes paga, com quem as alimenta, lhes bate ou simplesmente ameaça de morte.
 
Como podem continuar a receber nos corpos tais lobos, como podem continuar a parir uma tal humanidade e a dar o seu leite e o seu sangue a tais abutres?
 
Que esperança tão paradoxal e tão louca é que as sustenta, que amor transcendental ou esquizofrénico é que as impele, que não as deixa estrangular os filhos da tortura e da vergonha logo à nascença?
 
Guardam nas almas o vómito e o terror por quem lhes penetra e coloniza os corpos e assim formam de um modo perfeitamente contínuo e involuntário esta imensa trave mestra do nojo e do medo que sustenta o arco da violência no mundo, as mulheres - ou melhor, estas dolorosas mulheres impensáveis.  
 

Uma importante confissão



Como lhe disse, a humanidade não se divide em dois.
 
Você pensa que sou um homem, caro leitor, e o meu nome é Orlando I.

Tenho nome de rei, mas sou uma mulher.
 
Poderemos ser apenas o insignificante espinho quase invisível entre tantos desta vasta coroa que oprime e tortura a nossa imensa humanidade crucificada, mas, neste mundo, por mais que sejamos o sangue ou o espinho, a rapariga ou o homem, o forte ou o fraco, o nativo ou o colono, o explorador ou o explorado, o capital ou o trabalho, neste mundo, por mais que habitemos o lado da abundância ou o lado da miséria, o lado da liberdade ou o lado da opressão, o lado da paz ou o lado da tortura, o lado da saciedade ou o lado da fome, neste mundo haveremos de ser sempre a outra face de uma mesma dor, a respiração ou o silêncio de um mesmo grito e o breve esplendor de uma mesma morte.

«Neste mundo», porque para já não temos outro.

E é por isso que eu, Orlando I, vos digo que sou uma mulher.

Ou melhor, uma rapariga.

Na verdade, meu caro leitor não-humano, eu, Orlando I, não sou mais do que uma menina.

O casamento - ou a violação legal das meninas no Novo Sudão


 
Meu caro e querido leitor não-humano, continuemos então esta tarefa de desfiar o mundo, apesar da enorme dor que ela nos traz.

Como decerto sabe, um dos países mais pobres e corruptos deste planeta é o Sudão.
 
Atravessado pelo rio Nilo, banhado pelo Mar Vermelho, o Sudão é o terceiro maior país africano e faz fronteira com o Egipto, a norte, e com a Arábia Saudita, a leste.
 
O seu solo é rico em petróleo, gás natural, ouro, prata, crómio, asbesto, manganês, gipsita, mica, zinco, ferro, chumbo, urânio, cobre, cobalto, granito, níquel e alumínio, mas mais de um quinto da sua imensa população vive abaixo da linha de pobreza e, apesar da enorme riqueza do solo, o seu povo é o quinto mais faminto do mundo.

Sugado até ao tutano pela coroa inglesa, exaurido por duas guerras civis que se prolongaram por mais de quarenta anos, explorado economicamente nos dias de hoje por países como a França e a China, continuamente assolado por conflitos étnicos e duramente asfixiado por um ditador que sublimou essa velha e rude humilhação de escravo na potência de um rei-sanguinário, o presidente Omar al-Bashir, este povo vive sob a sharia, a lei islâmica que continua a violar as mais elementares proibições internacionais no que diz respeito a castigos cruéis, degradantes e desumanos.

É contra as raparigas e mulheres que as punições são aplicadas de um modo mais violento, em particular no que diz respeito a «crimes» que se relacionem com a maneira de vestir, a sexualidade e as crenças privadas, e foi no Novo sudão que Meriam Ibrahim, salva pela enorme pressão internacional, deu à luz no corredor da morte e na prisão amamentou durante dois anos o seu bebé, depois de condenada à forca e a cem chicotadas pelo crime de adultério e «apostasia», isto é, por ter casado com um cristão, uma vez que o casamento de muçulmanos com cristãos não é reconhecido pela lei vigente.

Desde o golpe militar de 1989 que Omar al-Bashir suprimiu todos os partidos políticos, dissolveu o Parlamento e se converteu em Director do Conselho Revolucionário para a Salvação Nacional, tendo cometido a proeza mundial de ser o primeiro Chefe de Estado em exercício a ser alvo de um mandato internacional de captura, pelo terrível conflito genocida em Darfur, cuja história total está por contar, cujos números completos estão por apurar.

O Novo Sudão, ou Sudão sul, essencialmente rico em petróleo, declarou-se independente em 2011, e é também um dos países mais pobres do mundo, apesar da riqueza do solo. Apenas vinte e sete por cento da população acima dos quinze anos sabe ler e escrever, sendo que entre as mulheres este número se reduz a metade. Apenas quinze por cento das mulheres acima dos quinze anos sabe ler e escrever, ou sequer contar. É difícil encontrar água e alimentos, e o sistema de saúde é conhecido como um dos piores do mundo, com elevadas taxas de mortalidade infantil.

É nesta paisagem do inferno que a lei permite o casamento de meninas a partir dos doze anos com homens que as paguem ou que as possam sustentar, libertando as suas famílias de origem do fardo de as alimentar e educar.

Akech, por exemplo, era uma menina que gostava de estudar e cujo sonho era ser enfermeira. Quando completou catorze anos, porém, o tio que a criava obrigou-a a deixar a escola para se casar com um homem mais velho e já casado com outra mulher, que pagou setenta e cinco vacas por ela.

«As meninas nascem para que a gente possa comer.» - Disse-lhe o tio. - «Tudo o que eu quero é receber o meu dote.»

Por duas vezes Akech fugiu e por duas vezes os primos e o tio a foram buscar e lhe bateram. Da última vez, levaram-na para a prisão e bateram-lhe tanto que Akech não podia andar, e Akech resignou-se.

No Sudão Sul quase metade das raparigas entre os quinze e os dezanove anos está casada e muitas têm apenas doze anos quando são obrigadas a casar. A organização Human Rights Watch documentou casos de raparigas cruelmente golpeadas, humilhadas verbalmente e ameaçadas de maldições, ou levadas para a polícia como no caso de Akech. Muitas foram mantidas em cativeiro e mortas pelas suas próprias famílias.

Você, meu querido leitor inumano, você com certeza chora de espanto e de tristeza porque você, tal como eu, você conhece as meninas e as crianças e já olhou muitas vezes para dentro dos seus olhos transparentes. Você sabe que uma criança e uma menina não é para ser trocada por vacas, nem por cabras, nem por notas ou por outros presentes, e você sabe que as meninas não são mercadorias, e que a humanidade não se divide em dois.

Mas esta é que é a nossa humanidade.



 

O mundo ao contrário...


Neste mundo onde não podemos sentir-nos humanos, neste mundo em que passamos a ser não-humanos, nós, os que choramos, neste mundo são as refeições que nos engolem e nos devoram, são as roupas que nos vestem, são as casas que nos habitam e são os bens que nos consomem.

E assim, comidos pelas coisas que colocamos em cima dos pratos, vestidos pelas roupas que nos classificam, habitados pelas casas que nos faltam ou nos invadem com o seu excesso de coisas e a sua falta de vazio, consumidos até ao fio pelos bens que trocamos pelo tempo das vidas, é neste mundo ao contrário em que nós os não-humanos não sabemos como pôr os pés, não sabemos onde colocar os corpos, nem sabemos como viver.

Porque já não é de dentro mas de fora dos corpos que nos assaltam e atingem os órgãos.

É do lado de fora que nos acertam os corações, os estômagos, os olhos e os ouvidos que nos furam as almas e as cabeças, como projécteis súbitos ou foguetes cruéis de uma estranha dor invertida.

A desmesurada dor dos outros que nos atinge de fora.

A carnificina em nome de Deus


Meu caro e cada vez mais estimado leitor sobrevivente, que resiste corajosamente ao paradoxo, à exposição da crueldade, ao infinito e, quem sabe, à loucura.
 
Bem sei que não pode continuar a sentir-se humano, depois de contemplar a paisagem apocalíptica que é a do nosso mundo actual.
 
Terrestre, sim. Mas humano, não.
 
De modo que vou chamar-lhe «leitor não-humano».
 
Sendo assim, meu querido leitor não-humano, é necessário confessar-lhe que precisamos de si como de pão para a boca e como de sal para as almas.
 
Você na sua desumanidade não percebe como se mata por ambição, poder, dinheiro ou terras e bens que simplesmente contam mais do que as vidas.
 
E você também não percebe como o sofrimento infligido pode trazer satisfação ao algoz. 
 
Você que não é humano não percebe a indiferença dos comodistas e dos inconscientes que assistem confortáveis nos seus sofás às fomes e às chacinas que vêem na televisão, sem verter uma única lágrima, enquanto comem batatas fritas.
 
E você também não pode perceber que os seres humanos não matem apenas por vingança ou por cobiça de diamantes e de outros bens. 
 
Você sente-se no limite de todo o entendimento possível quando vê que os humanos (pelo menos segundo dizem os que perpetram tais crimes) também matam por Deus.
 
Mas dizer «matar» é dizer muito pouco.
 
Decepam, decapitam, queimam, torturam, dizimam em nome de Deus.

Já no século XI, na Europa, o Papa Urbano II pregava que todos os que morressem em combate contra os pagãos iriam merecer a salvação, franquear as portas do Reino de Deus e habitar eternamente o paraíso.

Em 1099, segundo Guilherme de Tiro Jerusalém ficou de tal modo inundada de lágrimas, gritos e sangue que a carnificina até aos conquistadores causou desgosto e nojo, em vez da alegria da vitória.

Eram as Cruzadas. E em nome de Cristo se incendiavam casas, saqueavam cidades e passavam pelo fio da espada as cabeças dos infiéis.

Mesmo dentro de portas, no interior da Europa, a carnificina prosseguia, em pleno Renascimento.

Ateava-se fogo às bruxas em praça pública, e assim morriam as mulheres às centenas e aos milhares.

Tratavam-se os hereges e os judeus com a tortura do Potro, da Roda, do Pêndulo e da Água, e criavam-se, uma após outra, engenhosas máquinas de fazer sofrer.

Nicolas Eymerich escreveu, para ilustração e aperfeiçoamento das técnicas de inquisição, o Directorium Inquisitorum, que foi reimpresso várias vezes, ao longo de mais de cem anos, e que inspirou também o Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas).

«Ah!...» Você me dirá. «Mas isso foi antes da Declaração dos Direitos Humanos, antes do Holocausto, antes da elevada e revolucionária consciência que nos ensinou que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo!...»

E você me dirá ainda, meu querido e ansiado leitor não-humano: «Isso foi antes de percebermos que o desconhecimento e o desprezo pelos direitos do homem conduziram a actos de barbárie que revoltam a consciência da humanidade.»

Mas qual consciência?

De qual humanidade?

«Isso foi antes de ser proclamado como a mais alta inspiração do homem o advento de um mundo em que os seres humanos fossem livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria!...»

Gritará então você com plenos pulmões, meu querido leitor não-humano.

Mas não. Nada disto foi antes. Tudo isto é agora.

Foi neste mesmo ano corrente e não há mil ou quinhentos anos atrás que um jihadista britânico sugestivamente chamado Al-Britani apresentou on-line um anúncio para recrutar profissionais para o Estado Islâmico - agora, hoje, neste planeta.

Precisam de gente como assessores de imprensa, médicos, cozinheiros, mecânicos, personal trainers, guardas prisionais, professores, polícias que verifiquem se as mulheres estão vestidas correctamente e precisam ainda e especialmente de bombistas, cuja função é descrita como a «mais linda».

«Os irmãos no departamento que desenvolve as bombas são o coração e o esqueleto de todas as operações... Imagine a recompensa que é preparar um carro cheio de explosivos para que outro irmão os detone nas linhas do inimigo... Você terá a mesma recompensa que teria o irmão que carrega no botão e manda cinquenta infiéis para o Inferno!...»

Que ecstasy, poder matar, violar e torturar em nome de Deus e trazer para o plano da santidade e da virtude os delinquentes e os criminosos violentos que passam a ser coroados num tal paraíso!... 

Você sabe que não bastou destruir às marteladas os baixos relevos e as estátuas milenares de Nimroud.

Foi preciso fazer explodir integralmente a cidade e apagá-la totalmente da terra, reduzida a pó e a nada.

Graças aos filmes por si mesmo gravados é possível vê-los a derrubar esculturas de corpos humanos e cabeças de animais alados com martelos pneumáticos e picaretas, ao som de cânticos, e, tal como se arrancassem as vestes de velhos, de crianças, de mulheres ou de meninas, vêmo-los arrancar as protecções de plástico das estátuas milenares, como se estas não valessem nada.

Com bulldozers, Hatra de dois mil e trezentos anos é arrasada.

Mas não lhes basta fazer cair as estátuas e deixá-las desfeitas em mil pedaços.

É preciso fazê-lo com um ódio máximo e continuar a bater nas pedras até que se reduzam a pó, até que sangrem.
 
Meu querido leitor, meu bom amigo não-humano que escondes o rosto nas mãos e que porventura choras, tu sabes bem como somos todos nós que sangramos e cambaleamos neste deserto da loucura e do terror e que ainda assim todos os dias continuamos a preparar a mesa para o almoço, mesmo depois de saber como agora se queimam homens dentro de jaulas e como as meninas Yezidi se atiraram das montanhas Sinjar, no Iraque.
 
A sopa, o pão, a carne ou o peixe estão nos pratos a olhar para nós.
 
Mas é verdade que é cada vez mais pequeno o estômago que nos permite engolir uma tal refeição.
 
E há-de chegar o dia em que a refeição nos engolirá a nós, graciosamente.
 


A República Democrática do Congo


Vamos falar de um país que tem quase setenta milhões de pessoas, um dos maiores países do continente africano, a noroeste de Angola. 

Sim, vamos falar do caso extremo do que se passa hoje, diariamente, na República Democrática do Congo, e vamos falar do que está a acontecer agora mesmo, hoje mesmo, caro leitor, enquanto você lê ou passa os olhos por estas linhas.

Apesar de ser um dos países mais ricos do mundo em termos de recursos naturais, um país rico em diamantes, ouro, minérios, extensão, biodiversidade, terras, pessoas e florestas, a República Democrática do Congo é hoje um dos países mais pobres do mundo.

Depois de sangrado pela coroa belga e vampirizado pelo colonialismo europeu, o país ficou durante três décadas debaixo da enorme pata dourada de Mobutu, um órfão sanguinário que se auto-nomeou Mobutu Sese Seko Nkuku Wa Za Banga, ou, segundo uma das possíveis traduções: "O guerreiro todo-poderoso que, devido à sua resistência e vontade inflexível, caminha de conquista em conquista, deixando atrás de si um rasto de fogo".

Este gigante brutal acumulou em duas décadas e meia uma fortuna incalculável, protegida em bancos suíços, uma tal fortuna pessoal que em 1984 ascendia simplesmente ao valor da dívida externa total do Congo/Zaire.

Hoje, a República Democrática do Congo acumula vinte anos de guerra civil e os mortos e desaparecidos ascendem a mais de seis milhões de pessoas. 

São seis milhões que contabilizam os mortos e os ausentes... Não estamos a falar dos feridos, dos torturados, dos aterrorizados e dos violados... É a guerra mais terrível desde a Segunda Guerra Mundial.

Desde 2004 que o Tribunal Penal Internacional investiga a República Democrática do Congo, tendo condenado Thomas Lubanga Dyilo e Germain Katanga por crimes contra a humanidade, isto é, por saque, escravidão sexual, estupro, assassinato, destruição de propriedade e utilização de crianças em guerra.

Mas os massacres e as violações continuam entre as tribos inimigas dos tutsis e dos hutus baniamulenges, cujo ódio ancestral a miséria, a fome e a violência cada vez mais instigam.

Aí, a violação colectiva e a mutilação genital feminina são as armas de guerra que em cada um dos nossos dias fazem dezenas de vítimas, criando milhares ou milhões de mulheres e meninas mutiladas, todos os anos. Não há estatísticas para estes números, porque a vergonha faz esconder as vítimas. E como as mulheres, aqui como um pouco por todo o mundo, tantas vezes mais não são que propriedades que se trocam entre as famílias e que transitam de mão em mão como cabeças de gado ou rebanhos de vacas e ovelhas, violar as senhoras, as raparigas, as meninas e até as crianças de colo das famílias rivais em frente dos donos da casa e de toda a aldeia não significa mais que destruir uma sementeira, queimar um campo de trigo ou desmantelar uma casa até ao pó.

Assim se exerce a humilhação mútua e assim se faz a guerra.

Dizem as estatísticas deste moderno holocausto que um entre cada três homens participou activamente pelo menos uma vez na sua vida numa destas violações colectivas em que todos usam, não apenas o ódio e a força dos corpos, mas paus, machetes, espingardas, fogo, ácido sulfúrico e outras armas para mutilar e degradar para sempre essas meninas e mulheres, tornando-as inférteis.

Por todo o lado neste país um destes guerreiros é um amigo, um primo, um irmão, um filho, um pai, um servidor ou um chefe.

Alastra como uma peste a dor, a ignomínia, a violência, a mutilação e a vergonha entre as gentes num país onde para sempre se queimam e ardem as almas, enquanto o ocidente, o ocidente com as suas democracias, a sua abundância e a sua defesa dos direitos humanos, o ocidente, é verdade, que pela mão do FMI perdoa ao país noventa por cento da sua dívida externa e que envia dispendiosas operações da ONU que tentam tratar a malária, o sarampo, a cólera, a desnutrição, as infecções e os traumas, mas que não consegue travar o extermínio em massa deste povo, o ocidente que atribui a Denis Mukwege o prémio Sakharov, o grande prémio da União Europeia para os Direitos Humanos, distinguindo o médico ginecologista que com risco de vida edifica e mantém no leste do país um hospital onde se reconstróiem os corpos dessas mulheres mutiladas e onde se encontra alguma justiça para o sofrimento, o ocidente parece que nada mais faz.

Meu querido leitor extraterrestre... Meu Deus!... Como se alguém pudesse estender um pedaço da alma humana, um pedaço da compaixão humana, numa inócua bandeja de prata!...

Como podemos continuar a viver inteiros sabendo que hoje mesmo a violência arde e grassa deste modo nas casas deste planeta? 

Como podemos nós, as testemunhas silenciosas dos crimes, os imóveis que sabem mas que não se mexem, os mudos que ouviram mas que não falam, todos estes que têm os olhos bem fechados e a consciência adormecida com o que quer que haja por aí à mão de tóxico ou de tranquilizante, nós os que temos a alma desfeita em mil pedaços de tanto saber e nada poder, como podemos continuar a existir num tal planeta? 

Pomos um pouco de rímel nas pestanas, barbeamos as caras de manhã e andamos com a vidinha para a frente?

Choram e gritam as crianças violadas no rés-do-chão ou nas caves da casa em que vivemos, enquanto nós os felizes lavamos os dentes no décimo nono andar.

Os nossos corações ou os de quem ainda possui um tal órgão para a compaixão ficam desfeitos nos farrapos que lavamos nas nossas modernas máquinas de lavar e que depois estendemos nas cordas ao sol, à espera que sequem.

Lá os vestimos outra vez, estes corações um pouco menos encardidos pelo sangue e pelas lágrimas destas imensas multidões que todos os dias sangram e choram, os nossos corações oprimidos, sujos e salgados desse choro que choramos em vão por elas, e estes toscos corações que ainda agora remendámos, para que possam continuar a bater no interior dos nossos peitos, estes corações lívidos e cada vez mais duros e estragados de tanto que os lavamos e secamos ao sol, talvez um dia eles mesmos nos caiam do alto em cima das cabeças como enormes pedregulhos e nos deixem estatelados no chão da nossa cultivada inconsciência.

Píiiiiiiiiiiíiiiiiiiíiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!!!!!!!!!!.....

Talvez soe por fim o alarme deste último round que foi a nossa oportunidade para criar uma pequena diferença nas vidas e nos levem em braços para nos enterrarem no chão de uma vez por todas.
 

Este planeta...


Quanto à desigualdade impensável entre os pobres e os ricos, neste planeta, quanto à fome paradoxal que nos dizima no meio de tanta abundância, quanto à gula desmesurada dos gordos e à confusão dos inconscientes que comem serpentinas como se fossem spaghetti, quanto aos consumidores que trocam a sua alegria por todo o tipo de futilidades que lhes são impingidas por insidiosas propangandas ou hábeis operações de marketing, quanto à ambição desmesurada e imparável dos ricos e à multiplicação tendencialmente infinita dos capitais, você, meu caro leitor extraterrestre, você porventura me dirá, depois de aprender português: 

«Está a exagerar. Você não ponderou todos os aspectos dessa realidade.»

«Os pobres não serão os mais felizes?»

«Não serão mais puros os miseráveis e os doentes?»

«Mais lúcidos e conscientes os oprimidos?»

«E essa felicidade que se entretece com a pobreza, essa pureza que se mistura com a miséria e com a doença, essa lucidez e essa consciência que é martelada no fogo da opressão, não são essas afinal as almejadas chaves do reino dos céus que é o futuro profundamente ansiado por todas as nossas idênticas almas peregrinas?»

Ah!... Nós vamos simplesmente olhar para o que se passa neste planeta!...

Você perceberá porque é que alguns de nós não se sentem humanos.

E porque é que acreditamos que vocês, os extraterrestres, mesmo que nos conhecessem, mesmo que o espaço e o tempo se pudessem dobrar de um tal modo que as mãos ou os membros dos vossos corpos inimagináveis nos pudessem tocar, ainda assim não desejariam conhecer-nos mais, e muito menos contactar-nos.
 

O extraterrestre segundo Espinosa


Retomemos, então, o fio à meada.

Aceitemos que o espaço e o tempo sejam as «formas» da realidade numa experiência humana.

Como será um extraterrestre que não possua a experiência do tempo, isto é, uma experiência do tempo tal como nós, os humanos, a possuimos?

Concerteza será um extraterrestre imóvel e imortal, em corpo e em pensamento. 

Corpo imóvel, eterno e incorruptível - pensamento petrificado: um extraterrestre que certamente não viajará até nós, humanos.

Pelo contrário, aquilo que é mais essencial na nossa experiência consiste no facto de nascermos, vivermos e percebermos que vamos morrer. A minha morte é o limite da minha experiência, pois não faço a mínima do que seja isso: morrer.

Você sabe o que é morrer?

O que é que acontece aos outros quando se imobilizam e esfriam os corpos, quando as forças se vão e o ar já não os atravessa?

Nunca ninguém me veio falar dessa morte que lhe aconteceu viver.

Você sabe o que acontecerá a cada uma das nossas almas, depois de morrermos?

Será que elas atravessam o rio do esquecimento na grande barca das almas peregrinas, em direcção ao eterno olvido e à branca paz?

Ou vão por uma Via Láctea da saudade, pela mão de quem um dia as tenha amado, com os pés descalços entre o pó das estrelas?

Ardem na chama dolorosa do remorso com a consciência súbita, mas em vida sempre adiada, da sua própria maldade?

Ou revivem no Inferno e na pele a crueldade e a angústia que acaso tenham infligido aos outros?

Serão outra vez brandidas como bolas na tômbola de um jogo de sorte, agitadas como berlindes num tabuleiro de azar, para virem de novo à vida numa tentativa de finalmente existir, de encontrar uma existência em pleno?

Ou progredirão de patamar em patamar pela via arriscada e dolorosa da sua íntima superação, avançando ou recuando conforme a coragem ou cobardia, ao sabor do acaso e da fortuna?

Que coisas mais nos faltará ainda imaginar, de onde nos virá a inspiração?

É que o «tempo» parece não ser mais do que esta experiência básica e paradoxal da finitude, esta incrível consciência de um limite, como quem bate com a cabeça num muro, às cegas, no meio da escuridão. 

Pois, como poderei imaginar uma experiência sem tempo, ou uma vida sem extensão?

Sem espaço nem tempo, como poderei captar o movimento, a evolução e a transformação dos corpos e das coisas?

Pelo contrário, ao invés da experiência física do tempo, o infinito não é o tempo experimentado. 

A eternidade é sempre um tempo pensado, imaginado. 

Não há infinito no «aqui» e no «agora», a não ser que eu transforme o «aqui» e «agora» em segmentos de recta e decida dividi-los infinitamente. 

O que há é sempre um número depois do outro número, sempre um número entre um número e o outro número, sempre um corpo rodeado por outro corpo, uma coisa dentro de outra coisa, um espaço maior em torno do espaço menor, porque a eternidade no tempo parece ser como uma transposição do infinito do espaço para o tempo, ou um cruzamento entre a experiência do espaço e a experiência do tempo. 

Dificilmente imagino a minha própria eternidade, ou pelo menos a eternidade da minha alma naquele conjunto indissolúvel com o corpo da sua juventude, mas como é que poderei imaginar uma coisa que não esteja em lugar algum? 

O infinito traz-me a medida da minha própria insignificância e, porventura, a indiferença à virtude, mas, sem o infinito, por onde poderei escapar?

Sem o infinito, como saberei onde estou, ou onde ponho realmente os pés?

Por isso é que a solução de Espinosa me parece a mais perfeita de todas.

Segundo Espinosa, mesmo um extraterrestre imortal não será mais do que uma das infinitas essências singulares de uma substância infinita a que por vezes chamamos cosmos, e que, como um poliedro de mil triliões de lados ou de infinitos aspectos, gira com as fulgurações intermitentes dos seus infinitos atributos, sempre truncados para os olhos dos vivos, mas inteiros e infindáveis em si mesmos. 

Porque o espaço e o tempo passam a ser então apenas uma entre as infinitas faces de todas as coisas que mergulham o seu corpo na luminosa escuridão do insensível, ou do virtual, tal como um iceberg que ergue aos céus a faiscante crista branca mas que esconde sob as águas insondáveis a extensão maior da sua alma e as forças que o conduzem pela deriva do mar.

E é por causa também de Espinosa que me sinto mais extraterrestre do que humano, meu querido e desejado leitor extraterrestre, a quem a partir de agora me dirijo, na esperança de que você um dia possa decifrar o significado destas letras, navegar na internet e deslindar sem qualquer dificuldade a complicada gramática do português.

Nunca poderei entender este mundo onde todos os seres não se encaminham para a alegria, este mundo em que, à revelia de todos os discursos santificados e virtuosos que entretanto se produzem, muitos factos em cascata mostram como a indiferença, o poder, o dinheiro e os bens simplesmente contam mais do que as vidas.