Raif Badawi

 
 
Foi no início de Janeiro deste ano de 2015 que milhares de fiéis se concentraram à porta da mesquita de al-Jafali, em Jeddah, na Arábia Saudita, para assistir à aplicação das primeiras cinquenta chicotadas ao blogger Raif Badawi, enquanto gritavam «Allahu Akbar» - «Deus é grande».
 
Badawi foi condenado porque, segundo os tribunais sauditas, criou e alimentou um blogue - o Liberais Sauditas Livres - que «violou os valores islâmicos e propagou o pensamento liberal.»

A Arábia Saudita é uma monarquia absoluta teocrática governada pelo Rei Salman e pela família real que vem da Casa de Saud. O Rei rege-se pela Sharia, a Lei Islâmica que se condensa no Alcorão e nas Sunnas e que foi declarada como Constituição, não tendo sido entretanto redigida nenhuma outra Constituição para o país.

A Arábia Saudita é a segunda maior reserva de petróleo do mundo e a sexta maior reserva de gás natural. É um país riquíssimo, ainda que sem água doce. Tanto para a agricultura como para as pessoas é a água do mar que é utilizada, depois de dessalinizada.

Apesar de ser o décimo nono país com o rendimento per capita mais elevado do mundo, a Arábia Saudita é o único país em que as mulheres são proibidas de conduzir. A discriminação das mulheres é de tal ordem que elas na verdade não têm direito a sair à rua sozinhas, nem direito a herança, nem «voz legal», ou seja, têm sempre de ser representadas, como se fossem menores, pelo seu «guardião» masculino, pelo pai, pelo irmão, pelo marido ou por um filho, o que dá azo a índices dramáticos de violência. Ou a casos como os da menina que foi violada numa festa pelos amigos do irmão, na sua própria casa e que, obrigada a dar à luz em consequência de uma gravidez causada pelo estupro, foi depois apedrejada até à morte no meio da rua. (1)

Apesar de membro da ONU, a Arábia Saudita não reconhece a Declaração dos Direitos Humanos.

No seu próprio país, Raif Badawi, ao escrever frases como «os Estados assentes na religião confinam os seus povos a um círculo de fé e de medo», foi condenado a mil chicotadas em hasta pública e a dez anos de prisão.

Mas talvez o mais chocante seja que em Outubro deste mesmo ano Faisal bin Hassan Trad tenha sido nomeado, como embaixador da Arábia Saudita, em Genebra, para o comando do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (UNHRC - United Nations Human Rights Council), que é composto por quarenta e sete membros com o fim de promover e proteger os direitos humanos em todo o mundo.

O pequeno bicho humano vagueia ao sabor da sorte e dos países, dos reis, da miséria dos fracos ou da violência dos fortes. E a humanidade no seu todo continua a primar de tal modo pela incoerência que podemos talvez orgulhar-nos de ser a espécie mais indescritível de todo o cosmos.
 





(1) Esta história foi retirada do livro «A Princesa Sultana».

LEITURAS - KARL MARX

 
«Uma mercadoria parece à primeira vista uma coisa evidente, material.» - afirma Karl Marx, no final do primeiro capítulo d'O Capital.
 
Pense-se num pacote de acúcar, ou numa mala da Gucci, são coisas materiais e evidentes, não concorda?
 
«Da respectiva análise resulta porém que a mercadoria é uma coisa muito complicada, plena de subtileza metafísica e de caprichos teológicos.»
 
Reflicta-se um pouco nas mercadorias assinadas (por exemplo, na mala da Gucci) e na auréola brilhante que para certos grupos de crentes (não tão pequenos e pouco disseminados como acreditaríamos que fossem) parecem trazer consigo, na aura mágica que arrastam e no prestígio de que se sente possuído o seu portador.
 
«Enquanto valor de uso, nada há de misterioso na mercadoria (...).»
 
Pois o açúcar serve para adoçar - e uma mala serve para transportar coisas.
 
«É evidente que o homem transforma as formas das matérias naturais de uma maneira que lhe é proveitosa. Por exemplo, a forma da madeira é transformada quando a partir dela se faz uma mesa. Não obstante, a mesa continua a ser madeira, uma vulgar coisa sensível. Mas, logo que se apresenta como mercadoria, a mesa transforma-se numa coisa ao mesmo tempo sensível e supra-sensível. Não só assenta os pés, antes sucede que, face a todas as outras mercadorias, se coloca de pernas para o ar e, a partir da sua cabeça de madeira, desenvolve extravagâncias, muito mais estranhamente do que se começasse a dançar por vontade própria.»
 
Caro leitor, caro extraterrestre, sente-se chocado se lhe dissermos que as coisas se põem de pé e que além de se levantarem do chão ainda se põem de pernas para o ar, que têm forças próprias e poderes quase mágicos, que esticam as cabeças e desenvolvem caprichos e extravagâncias?
 
Você não acredita que coisas sem alma se movam com vida própria, pois não?
 
Como é que um ídolo de madeira e barro, o ceptro dourado de um sacerdote senil, um pacote de açúcar ou uma mala da Gucci podem acorrentar o desejo dos homens, impor-lhes a sua vontade própria e orientar as suas vidas?
 
Meu querido leitor extraterrestre, se você quiser conhecer um planeta onde a inteligência ficou refém de mercadorias e de coisas assinadas, um planeta em que os humanos passaram a ser propriedade das suas próprias produções, não hesite, venha visitar-nos!
 
Decerto ficará estupefacto e encantado por poder testemunhar um estágio da evolução da consciência no cosmos em que a grande maioria dos seres pensantes ainda não percebeu que a revolução pós-capitalista só começará quando em massa for de uma evidência atroz que as vontades e as almas não andam a mando do comércio das coisas. 
 
 

  
 *«O carácter de fetiche da mercadoria e o seu segredo» in O CAPITAL.

Actos de fé e neo-liberalismo


Caro leitor, como sabe, desde o início deste blogue que defendemos com unhas e dentes a legitimidade da nossa questão, isto é - saber porque é que os extraterrestres não nos contactam.
 
Não queremos recuperar agora todos esses hilariantes argumentos - que em particular foram especialmente úteis para aliviar o mal-estar que nos causa o conhecimento do estado de coisas no mundo, através do absurdo e do riso.

A que mais podemos recorrer em tais situações desesperadas, senão ao humor negro?
 
Mas recordar-se-á decerto que um dos passos mais importantes da nossa argumentação consistiu em pensar porque é que os extraterrestres - fossem eles os seres com potência tecnológica para atravessar as distâncias imensas do cosmos, e, portanto, com alguma sanidade mental associada que lhes tivesse permitido sobreviver a uma tal potência - isto é, porque é os extraterrestres haveriam de partir do príncipio que seria útil ou interessante contactar-nos.
 
E foi na esteira deste raciocínio que decidimos realizar uma descrição do estado de coisas no mundo, no que diz respeito aos comportamentos gerais dos homens que, como se sabe, são, ou económicos, ou políticos.
 
De tempos a tempos, porém, temos de fazer paragens na nossa lista das atrocidades.
 
Alinhar os argumentos. Recuperar do choque. Reflectir.
 
Observamos que todas as atrocidades instituídas têm um factor comum - o dinheiro. Esta é a forma material do poder, no nosso mundo actual. Em tempos esse poder foi, em vez do dinheiro, a terra, o gado, mesmo as mulheres. Agora, o poder está cristalizado no dinheiro, e, por vezes, em meros números. Que se esconde sob a capa dos fanatismos religiosos que sangram o Médio Oriente, senão a conquista do petróleo?
 
Foi por isso que escrevemos: «O mundo, o absurdo, a crueldade e a amante deles (a cobiça).»

Mas é preciso sublinhar que o nosso mundo actual, tal como existe, também é fruto de uma crença.

Isto é, o nosso mundo é o fruto directo da crença na auto-regulação (a prazo) dos fluxos de capitais. 

Trata-se de um acto de fé, exactamente com a mesma margem de erro de qualquer outro acto de fé que transponha da experiência passada uma visão para o futuro.
 
Marx analisou esta «tendência» do capital para se auto-regularizar, através de um movimento próprio que alterna entre as crises e os oásis de progresso e que, de acordo com o acto de fé dos neo-liberalistas, produziria sempre oásis mais duradouros e abrangentes, até ao ponto vitorioso em que estes serviriam de abrigo a toda uma humanidade emancipada.*
 
Mas o primeiro problema do acto de fé que crê na infinita capacidade auto-reguladora dos capitais reside no facto deste movimento ser pensado como movimento potencialmente infinito, ou seja, sem um limite real. Levando às últimas consequências este acto de fé, a consequência mais natural do capitalismo tem de ser a colonização humana das galáxias e do cosmos, e não é impossível que um tal estado de coisas venha a realizar-se.

O que temos, porém, só por hoje, e mesmo por amanhã, é um pequeno planeta com limites, com recursos e territórios limitados e um equilíbrio frágil e precário.

Este planeta grita-nos já com todas as suas palavras não-humanas que é necessário regular a exploração ilimitada dos recursos, que a espécie humana não só ameaça toda a vida do planeta, como se ameaça a si própria de extinção.

Aos membros dos países desenvolvidos, entre os quais me incluo, e para quem a crença no progresso material ilimitado não foi questionada, a esses membros talvez não lhes seja muito cómodo pensar que se a humanidade inteira consumisse na medida dos seus gastos, o necessário seriam três planetas e não apenas um. E não é possível afirmar que o homem tenha poder para triunfar sobre a natureza como um todo, porque o homem depende da natureza.

No estado de coisas actual, é mesmo caso para dizer que teríamos mais orgulho em ser um rato do que um ser-humano, tal é a grosseria com que os seres humanos tratam a delicada natureza.
 
Mas há ainda um outro aspecto igualmente grave, criminoso, um aspecto igualmente trágico e que parece ser curiosamente indiferente ao acto de fé dos neo-liberalistas. É o preço humano das crises económicas que asseguram o progresso do capitalismo, crises essas que devoram ou simplesmente aniquilam o potencial de gerações, de milhões de seres-humanos.
 
É um facto que muito do nosso progresso e bem estar se deve às conquistas materiais do capitalismo. Mas muito do nosso progresso e bem estar se deve também à descoberta da electricidade, da penicilina ou dos conservantes. Muito do nosso progresso e bem estar se deve à ideia de liberdade e direito que foi pensada, criada, explicada e acarinhada por dezenas de filósofos e de escritores, ao longo de séculos. O nosso bem estar e progresso deve-se também às Sonatas de Mozart, à Declaração dos Direitos Humanos e à obra «Para a Paz Perpétua», de Kant. Deve-se à tentativa de execução de um conceito de estado social que foi progressivamente criado ao longo de várias centenas de anos e inclusivamente com o sacrifício da vida de homens de excepcional coragem e visão.

Qualquer pequena criança é capaz de sentir que a música lhe traz paz e conforto. Mas parece haver uma cegueira inerte no acto de fé do neo-liberalismo quando postula que o bem-estar da humanidade depende directamente do seu progresso material, independentemente do sacrifício dos milhares de seres humanos à conta de famigeradas «crises». 

Porque o que se verifica também é que o nosso progresso e bem-estar deve muitíssimo à criatividade e ao potencial de seres-humanos singulares que se afirmaram num máximo das suas possibilidades, num máximo da sua potência.

Neste prisma, cada geração que se perde, cada ser humano que se sacrifica neste acto de fé que é cego, cada uma destas perdas realmente trágicas é uma privação a que todos nos condenamos.

Na verdade, condenamo-nos à privação de um presente e de um futuro tão espantosos que ainda não estão sequer na nossa imaginação, do mesmo modo que nem a penicilina nem a lâmpada estiveram na imaginação dos homens do século IX, na Europa.

Porque haveria alguém de nos contactar, a nós, que enveredámos em massa por um tal caminho de insensatez e de loucura?


 
 
* Karl Marx, O Capital, Vol. I, Capítulo XV «A lei geral da acumulação capitalista».
 

O mundo, a crueldade, o absurdo e a amante deles



Neste mundo - o azul planeta que gira entre Vénus e Marte e cujo fim está decretado pela morte do sol -
 
neste mundo em que tantos países ricos em petróleo, ouro e diamantes deixam as suas gentes à fome e as crianças à morte - 
 
em que as dinastias dos ricos distribuem armas para as guerras que fazem florescer os negócios convenientes, independentemente dos cadáveres formulados -
 
em que os poderosos ainda calam com morte e prisão as vozes desconformes -

em que a loucura floresce apesar das inteligências agudas -

em que as barbaridades são alardeadas e vendidas - com alegria -

e a filosofia e a poesia - emudecidas -

neste mundo em que as pessoas valem pouco ou nada -

mas os mercados e o dinheiro são mais que deuses - e mandam nos povos -

neste mundo a crueldade e o absurdo dançam numa roda de pleno caos que ergue cada vez mais alto a crina de uma loucura perigosa e estridente.
 
Grassa a indiferença, porque, quando a desordem é muita, embotam-se a inteligência e os sentidos.

E a amante deles?

Chama-se cobiça.
 

Ocidentais que desejam a Jihad



Muhammad Oda Dakhlalla e Jaelyn Delshaun Young, um jovem de vinte e dois anos, formado em psicologia, e uma jovem de dezanove, prestes a ingressar na faculdade, ambos cidadãos americanos, foram presos no aeroporto de Columbus, no Mississippi, sob a acusação de pretenderem alegadamente juntar-se à Guerra Santa do Estado Islâmico.
 
Dakhlalla, pelas declarações que fez a um falso agente intermediário do ISIS e que na verdade pertencia à CIA, mostrou-se disponível para participar no movimento terrorista com os seus conhecimentos em media e computadores e, além disso, mostrou-se pronto para «lutar». O discurso de Young, um pouco diferente, focava-se em ajudar os doentes na frente de batalha e em destruir o conjunto de «mentiras» que circulam no ocidente sobre o ISIS. Dakhlalla pertence a uma família muçulmana, que se mostrou chocada com as intenções do filho, enquanto Young se converteu recentemente, porventura durante o curto namoro que precedeu o casamento de ambos, antes da partida.
 
É conhecida a força de atracção do Estado Islâmico sobre certos grupos de jovens ocidentais, tanto rapazes, como raparigas, e não apenas religiosos e devotos. Como sabemos, centenas foram já recrutados e engrossam as fileiras dos combatentes pelo Estado Islâmico.
 
Se alguém que vive numa sociedade democrática e pacífica, onde estão instituídos estados de direito e o respeito pelos direitos humanos e pela igualdade de oportunidades entre os sexos, se alguém que é educado no contexto de tais ideais, mesmo que imperfeitos na vida prática, se rende a uma guerra que prima pela violência e pelo terror radical, pela escravização das raparigas, pela morte dos homossexuais, pela destruição da arte e pela aplicação brutal da Sharia, uma lei religiosa de perfil medieval - é caso para perguntar: qual a sua motivação?
 
Que procuram estes rapazes e, de um modo ainda mais desconcertante, estas raparigas? Onde foi que fermentou um tal ódio à civilização que os viu nascer? De onde vem a violência ou o desespero que lhes motiva uma tal fuga e uma tal vingança?
 
Porventura alguns de nós acreditaram que havia uma coisa a que se poderia chamar «progresso». Avançar para a implementação global de um estado de direito em que os direitos humanos, valorizados, amados e defendidos, permitissem construir um mundo cada vez aberto e mais justo para todos os que nele habitam - um mundo onde a paz e o pão fossem casa para todos, e não apenas para alguns, um mundo em que a celebração da existência de cada um, na sua singularidade, fosse a atitude natural e criadora de toda a riqueza comum - esta seria a evolução natural e desejada a que gostaríamos de chamar «progresso».
 
O que os factos demonstram, porém, é que a abolição da barbárie é como a terra conquistada ao mar na Holanda. Talvez não seja, como gostaríamos de acreditar, uma coisa «natural», mas é uma conquista frágil e dolorosa que na realidade se fez com mortes, sofrimento, sangue e muito desespero. Algo que se pode desagregar a um ritmo alucinante sob uma nova ordem mundial, do mesmo modo que cai um baralho de cartas ou se desfaz um castelo de areia à beira-mar, e algo por que teremos de lutar com maior veemência ainda, e porventura com maior sacrifício e paixão.
 
Há mentes na terra mais insondáveis que em qualquer planeta distante, a muitos milhões de anos luz.
 
 

Sahar Gul (2011)


Sahar Gul foi vendida como noiva aos treze anos de idade, na província de Baghlan, no Afeganistão.
 
Depois da morte do pai, aos nove anos de idade, Sahar Gul trabalhou na casa do seu irmão Mohamed, cuidando do gado, colhendo a fruta e fazendo tijolos de esterco para combustível.
 
Era analfabeta, pois não tinha oportunidade de ir à escola.
 
Sahar Gul resistiu a consumar o casamento durante semanas.
 
O marido, a cunhada, o sogro e a sogra batiam-lhe com canos de ferro quente e deixavam-na passar fome.
 
Sahar Gul conseguiu fugir e pedir ajuda à polícia, mas foi devolvida à casa do marido, com a promessa de que este não a torturaria mais.
 
Porque se recusou a prostituir e a dar o dinheiro à família, Sahar Gul continuou a ser torturada.
 
Preocupado porque não conseguia contactá-la, Mohamed veio a descobri-la num curral e num tal estado de fraqueza que teve de ser dali tirada num carrinho de mão.
 
O marido e a família foram condenados a dez anos de prisão, mas passado um ano foram colocados de novo em liberdade.
 
Eles foram capazes de arrancar  as unhas e o cabelo de uma menina e de torturar uma criança de um modo que somos incapazes de reproduzir, tal é a angústia e horror que estes factos nos causam, mas estão em liberdade.
 
E nós perguntamos - e na aldeia onde viviam?
 
Ninguém ouviu os gritos?
 
Ninguém teve compaixão das lágrimas?
 
Em roda todos viraram a cara?
 
Todos se calaram?
 
Para ninguém foi insuportável o sofrimento de uma menina indefesa e inocente, ao ponto de agir, de fazer qualquer coisa?

Enquanto grassa a fogo solto a crueldade e os seres humanos tratam as meninas e as mulheres como se fossem coisas e objectos que se podem vender, usar, exibir ou comprar, que humanidade seremos?
 

Os pássaros e as raparigas na Índia



Apesar de todos os esforços que se fazem para modificar os comportamentos relativamente às mulheres, é sabido que o número de crimes sexuais continua a aumentar na Índia.
 
Este é um dos países mais populosos do mundo e uma das grandes potências económicas da Ásia.

Apesar do regime de castas, a Índia é considerada uma democracia parlamentar - o que é um perfeito absurdo.

Não pode haver democracia quando cento e sessenta e seis milhões de pessoas num país não têm voz.
 
Rica em biodiversidade, em pessoas, na cultura e em diversidade linguística e religiosa, a Índia viu nascer o hinduísmo, o budismo, o jainismo e o sikhismo.
 
Contudo, apesar do endurecimento das leis, os conselhos de aldeãos continuam a aplicar condenações que implicam a violação em grupo das raparigas, e muitas vezes a sua morte.
 
Foi o que aconteceu em 2014 a uma mulher que manteve uma relação proibida com um homem de outra comunidade durante cinco anos, tendo sido obrigada pelo conselho de aldeões a pagar uma soma equivalente a trezentos euros pelo crime.
 
«A família não pode pagar. Por isso, desfrutem da rapariga e divirtam-se.» Foi a sentença do conselho.
 
Por outro lado, é sabido que as raparigas que pertencem à casta dos intocáveis estão sujeitas às maiores brutalidades.
 
Em 2014, a violação em grupo e enforcamento de duas adolescentes, de catorze e dezasseis anos, em Badaun, no estado de Uttar Pradesh, moveu a Amnistia Internacional.
 
O pai de uma das adolescentes contou que procurou a ajuda da polícia quando deu pela ausência demorada da filha e da prima, mas o polícia de serviço naquela noite recusou-se a registar a queixa e a investigar o desaparecimento.
 
Pelo contrário, esbofeteou-o, depois de o questionar sobre a casta a que pertencia.

As chamadas castas inferiores são grupos de pessoas também conhecidas como «intocáveis» ou «sem casta» na Índia, formados por uma população mista, com uma variedade de idiomas e religiões, e representam cerca de dezasseis por cento da população total do país, ou seja, cerca de cento e sessenta e seis milhões de pessoas.
 
Desculpe-me, caro leitor, mas tenho de interromper esta descrição porque estou com vontade de vomitar.
 
Agarramos o estômago mas o peso da nossa impotência é como uma malha obtusa que nos asfixia e enjoa - que nos arrasta até ao limite náusea.
 
Porque foi também na Índia no ano 2015 que a corte de Nova Deli decidiu que os pássaros têm direito de viver com dignidade e fora de gaiolas, voando livremente.
 
«Tenho claro em minha mente que todos os pássaros têm os direitos fundamentais de voar nos céus e que os seres humanos não têm o direito de mantê-los presos em gaiolas para satisfazer os seus propósitos egoístas ou o que quer que seja.» - afirmou o juiz.
 
Na Índia, como no mundo, vemos florescer e apodrecer a humanidade num mesmo espaço, num mesmo tempo, num mesmo instante.
 
Não sabemos ainda porque é que a palavra «paradoxo» se tornou necessária - a ponto de existir.
 
Bastava dizer - «ser-humano».

 

Primeiro Intervalo


 
Façamos, neste momento, o ponto da situação.
 
Como decerto se recordará, comecei logo no início deste blogue por apelar ao seu sentido crítico, caro leitor.
 
Tentei demonstrar-lhe, sem lhe ocultar as fragilidades evidentes de uma tal demonstração, como a questão de sabermos porque não somos contactados por extraterrestres é, de facto, pertinente.
 
Após breves mas perspicazes incursões científicas, arrasado com a incomensurabilidade do universo conhecido e especulado, propus-lhe então que olhássemos estritamente para o nosso planeta e, em particular, para o mais incompreensível e disseminado mito da era moderna do capitalismo neoliberal - o do crescimento infinito.
 
Foi neste contexto que lhe apresentei Charles Chaplin comendo serpentinas como se fossem esparguete.
 
Foi também a partir daí, meu caro leitor, humano, não-humano, ou extraterrestre, que iniciei o périplo para o qual não sei ainda se terei as forças necessárias. Questiono-me neste momento se serei realmente humano, porque não sei já de que lado é que estou, se do lado humano, se do não-humano.
 
Falei-lhe da violação em massa das mulheres na República Democrática do Congo, como estratégia de guerra, em luta pelos diamantes. Da carnificina em nome de Deus, em pleno século XXI, perpetrada pelo Estado Islâmico. Do casamento ou da violação legal das meninas no Novo Sudão. Da lapidação pública e dos crimes de honra no Paquistão, em que as raparigas tanta vezes são mortas pelos tios, pai e irmãos. Do tráfico humano no mercado negro global, por um lado, e da exploração legal mas infame do trabalho, por outro. E das crianças que matam.
 
Confessei-lhe, caro leitor, como, apesar deste nome de rei, eu, Orlando I, não sou mais que uma menina.
 
De olhos bem abertos. Continuemos.
 
Que nos sejam facultadas forças para prosseguir.
 
 
 

Crianças que matam 2


Boston
22 de Abril de 1874
 
Jesse Pomeroy, um rapaz que vivia num bairro extremamente pobre e que se destacava na cidade pela grande cabeça e lábio leporino, uma pupila quase branca e um certo atraso no desenvolvimento, espancou até à morte Horace Millen, um menino de quatro anos.
 
Já antes tinha sido preso por torturar e por bater em sete rapazes. Quando descoberto o cadáver de uma menina que estava enterrada debaixo do chão da casa da mãe, confessou ter morto outras vinte e sete crianças. Doze corpos foram finalmente desenterrados no terreno em torno da sua casa.
 
Jesse Pomeroy tinha catorze anos quando foi condenado a prisão perpétua sem contacto com nenhum ser humano. Viveu quarenta e um anos em solitária, tendo tentado o suicídio repetidas vezes. Aprendeu a escrever em várias línguas e gizou alguns planos para se evadir. Tinha esperança de um dia guiar um carro ou de voar num avião, mas morreu num hospital prisional, com 72 anos.
 
Da sua infância sabe-se que ele e a irmã eram despidos e chicoteados pelo pai nas traseiras da sua casa, até sangrarem.
 
Nova Iorque
2 de Agosto de 1993
 
Eric Smith, um rapaz sem amigos que era humilhado na escola pelas orelhas esquisitas, pelos cabelos ruivos, pelas sardas e pelo atraso que mostrava na aprendizagem, matou com duas pedras um menino de quatro anos, que sodomizou com um ramo de árvore.
 
William York, com dez anos, no século XVIII, matou a menina de cinco anos que dormia com ele na mesma cama, por ter feito chichi enquanto dormia.
 
William Allnut, com doze anos, em 1847, envenenou com arsénico toda a família.
 
Alfred Dancey, com catorze anos, em 1850, disparou até à morte sobre as crianças que o maltratavam e humilhavam na escola.
 
Marie Schneider, com doze anos, em 1886, matou uma criança de três anos, lançando-a de uma janela.
 
E tantos outros.
 
Barry Dale Loukaitis. Robert Thompson. Jon Venables. Todd Cameron Smith. Akiyoshi Umekawa. Luke Woodham. Tim Kretschmer. Lionel Tate. Yukio Yamaji. Charles Andrew Williams. Jasmine Richardson. Jasmiyah Kaneesha Whitehead. Tasmiyah Janeesha Whitehead. Eric Hainstock. Alyssa Bustamonte. Jeff Weise. Graham Young. Michael Barton. Paul Taylors. Josh Phillips. Carl Newton Mahan. Brian Lee Draper. Torey Michael Adamcik. Brenda Spencer. O assassino de Aniyah Batchelor...
 
(...)
 
Em cada crime há uma história por contar - ou uma história que é impossível de contar.
 
O que lhes aconteceu?
 
O que fizeram?
 
O que lhes fizeram?
 
A violência não se adorna, nem de razões, nem de discursos.
 
 
 
Horace Millen, vítima de Jesse Pomeroy
  


Crianças que matam 1


1968

Em Inglaterra, Mary Flora Bell, filha de uma prostituta que a terá vendido desde os quatro anos aos seus clientes, entre os dez e os onze anos estrangulou até à morte dois meninos.

Martin Brown, de quatro anos, e Brian Howe, de três anos.



«I murder so that I may come back.»
 
Escreveu Mary Bell nas paredes de um orfanato em Scotswood, que vandalizou, em conjunto com a sua amiga e cúmplice de treze anos, Norma Joyce Bell.
 


A crueldade



Todas as partes envolvidas no conflito da Síria - xiitas, sunitas, Estado Islâmico e aliados -, são citadas por alguns ou por todos os crimes de guerra.
 
Violações. Expropriações. Roubos. Tortura. Morte de civis.
 
E o Estado Islâmico deixa o mundo paralisado com os seus actos de crueldade e barbárie que são divulgados em vídeos no youtube e que circulam pela internet.
 
Homossexuais que são lançados de um oitavo andar amarrados a uma cadeira.

Cidades e ruínas milenares reduzidas a pó com bombas e bulldozers. 
 
Espiões afogados dentro de uma jaula no fundo de um rio, enquanto uma câmara subaquática lhes filma a agonia.
 
Mulheres escravizadas, vendidas ou dadas como prémio a um louco que se entretenha a decorar o Alcorão.
 
A crueldade é como um fluxo, uma força mecânica que anula a vontade dos homens - ou como uma doença?
 
É como um animal interior e secreto que está apenas domado pelas circunstâncias da civilização moderna, prestes a saltar e a atacar no deserto ardente da revolta e do desespero?
 
Ou será o verdadeiro e o mais feroz rosto dos homens?

A máquina absurda e real que inscreve os tentáculos do poder nos corpos, através da dor?
 
E que ainda assim não deixa de ser o resto repelente e vingativo do que sobra quando lhes são arrancadas as almas, aos homens, como um horrível corpo sangrento que progride e que anda, apesar de esfolada a pele?

As crianças também matam - você já olhou bem para o rosto de um verdadeiro assassino?

Há sempre qualquer coisa que falta no rosto de um assassino.

Um movimento falta, há qualquer coisa de subtilmente parado, na carne das faces que se deixam ficar imóveis, caindo sobre os ossos.

Qualquer coisa falta nesses rostos - e falta qualquer coisa no brilho que está no fundo dos olhos - o quê?

Será porventura qualquer coisa afim da simpatia ou da vergonha, esses mesmos afectos que nos fazem sorrir ou crispar perante as câmaras, alisando as roupas com um excesso de pudor ou de brio... mas outras vezes também há aí um excesso... nesses rostos, um excesso de ódio.
 
E a indiferença parece ser a mãe dilecta da crueldade.

Põe-se a nu  e à tona uma estranha amputação da alma - uma tremenda atrofia da sensibilidade.
 
Se já não sinto a minha dor - como sentirei a dos outros?

No dia em que as lágrimas pararem de correr pela sua face, caro leitor, seja ela humana, extraterrestre ou não-humana, nesse dia, caro leitor, existe um mundo inteiro que está em risco.

O mundo que hoje mesmo está em risco - agora.

O nosso mundo.


Síria

 
Desde 2011 que as luzes se apagam na Síria que passa a negro vista do céu.

Na Universidade de Wuhan, na China, Xi Li observou através de fotografias por satélite como a devastação da guerra extinguiu as luzes entre Março de 2011 e Fevereiro de 2015, uma escuridão que apenas se equipara ao rasto da escuridão equivalente que deixou atrás de si o genocídio de Ruanda.

As crianças morrem de frio nas tendas e nas barracas com as temperaturas negativas do Inverno, e param as escolas, as casas, os hospitais, as fábricas, as padarias...

Os números estimam mais de duzentos mil mortos, cinco milhões de deslocados e quatro milhões de refugiados. Mas eu pergunto-lhe, caro leitor - como podemos sequer imaginar a dimensão de tais números? Onde está a medida da dor, da loucura, da violação da justiça, da paz e da inocência? Onde está a régua impossível que possa medir o desespero ou o sem-fundo de uma tal escuridão?

Começou como mais um dos protestos da Primavera Árabe, dessa vez contra Bashar al-Assad, num país que se mantinha em estado de emergência há mais de trinta anos e depois de serem presos e torturados os adolescentes que tinham escrito no muro da escola algumas palavras de revolta contra o regime, na cidade de Deraa.

Transformou-se então na batalha sangrenta que confronta hoje a maioria sunita com a minoria xiita alauíta do presidente, envolvendo os países vizinhos e as grandes potências ocidentais.

Foi como se tivessem acendido um rastilho.

De um lado estão o Irão e a Rússia que apoiam com amplos recursos militares o regime do Presidente e do outro lado estão a Turquia, a Arábia Saudita, o Catar, o Reino Unido, os EUA e a França, apoiando a oposição sunita.

Xiitas e sunitas distinguem-se especialmente pela interpretação que fazem dos textos sagrados do Alcorão. Os primeiros, mais conservadores, os segundos, mais progressistas. E ainda pela disputa que se originou em 632 d.C., pelo direito da sucessão legítima do profeta Maomé. 

Extraordinário, o que pode dividir os homens.
 
Nesta terra do deserto e do caos é que pôde avançar o Estado Islâmico, um grupo sunita radical, conquistando inúmeras armas e armamento pesado, importantes campos de produção petrolífera, centrais eléctricas, incríveis quantidades de mantimentos e terras e, de cidade em cidade, aniquilando os povos, as ruínas milenares, queimando os museus e violando as raparigas.

Quem vence é a crueldade?
 
Nem as estrelas desaparecem ao desbarato com a nossa dor, nem estoiram as montanhas com a nossa revolta.
 
Alguma vez o nosso desejo foi capaz de entrar pelas chaminés das casas para saquear o coração de alguém que se esqueceu de nos amar?
 
Entre a nossa intensidade e o mundo há um abismo - a impotência.


O grito



Como se escreve um grito?

Um grito imenso. 
 
Um grito que soe durante horas, dias, ou uma vida maior que a nossa.

Como se escreve o insuportável?

Leitor humano que porventura ainda me acompanhas, como é que vamos lavar as nossas mãos depois da refeição e colocá-las sobre os volantes dos automóveis?

Como podemos viver e ao mesmo tempo pensar?

Como podemos saber e ao mesmo tempo continuar?

Como é possível que a carne não nos salte dos ossos, depois de uma tal revolta?

Como é possível que os olhos continuem encaixados nas nossas órbitas, depois de uma tal visão?
 
Porque é que a nossa pele não se derrete nem se evapora em espirais de azul e amarelo e vermelho que girem mutuamente e em sintonia com a alucinação da nossa angústia?
 
Porque é que o espaço inteiro nem se torce nem geme com o silvo agudo da nossa incompreensão e da nossa impotência?

Onde está esse grito?

Esse grito tremendo que talvez nos aliviasse do caos e do absurdo, antes da morte?

Tráfico humano I


Meu caro leitor sobrevivente, foragido, extraterrestre, perplexo, morto, vivo ou ainda por nascer, você sabe que existe neste planeta um amplo mercado negro em que se vendem as jovens mulheres e as meninas, vendem-se as crianças pobres e indesejadas e assim se infiltram um pouco por todo o nosso mundo, nos becos miseráveis da imigração ilegal, nas casas de passe e nos meandros trágicos e tortuosos da pornografia infantil, a vergonha e a degradação extrema que vêm de tratarmos os seres humanos como coisas de comércio.
 
Porque o tráfico de pessoas continua a ser uma das formas de comércio ilegal mais lucrativa no mercado mundial e calcula-se que movimente por ano cerca de quarenta e quatro bilhões de dólares.

Porém, aquilo em que você porventura não perderá muito tempo a reflectir, meu caro leitor terrestre, pacífico, satisfeito, instalado, acomodado ou tranquilo, é como muitos entre nós trocam o tempo de vida por dinheiro ou por trocos, para garantir o pão, o tecto, a roupa ou um resto de dignidade.

«Nada há de mais característico que a distinção entre os operários que trabalham durante todo o dia e os que trabalham só meio dia, à semelhança das crianças menores de treze anos que não devem trabalhar mais de seis horas por dia. Em inglês são representados, os primeiros, por full time (tempo completo); os segundos por half time (meio tempo). O trabalhador, assim classificado, não é mais do que uma personificação do tempo.» (1)
 
Também há quem receba em troco desse tempo de vida tão pouco que não chega para ter uma «vida», isto é, não chega para mais do que trabalhar para comer e dormir. Chama-se a isso, eufemisticamente, «exploração», ou, se retirarmos o eufemismo, «escravidão».
 
Em 1803, foi pela primeira vez proibido o comércio de escravos no mundo, pela Dinamarca.

«Apenas nos contemplam dois séculos de compaixão.» Afirmará você, perplexo diante dos antigos preceitos que justificavam o comércio dos corpos com a ideia de que estes não teriam alma.

Seguiu-se o Reino Unido, em 1807, os Estados Unidos, em 1808, e o Brasil, em 1831.

A Mauritânia foi o último país a extinguir a escravidão por lei, só em 1981, há menos de trinta e cinco anos. 

«Que lenta que é a marcha humana para a dignidade!...» Exclamará você, meu querido leitor exausto.

Estima-se porém que existam ainda pelo menos vinte e sete milhões de escravos no mundo, fora todos aqueles a quem a pobreza obriga a um salário miserável no lugar do grilhão e do chicote, em nome do medo e da fome, fora todas essas populações de países inteiros que, vítimas de crises financeiras, bancárias ou de estado, se vêem forçadas a prescindir de remunerações, a acrescentar horas ao seu horário de trabalho semanal e a entregar ao estado sob a forma de imposto ou taxas alguns meses desse horário inflacionado que se destinava à subsistência, cativas, como trabalhadores forçados ou prostitutas, de uma dívida que lhes foi peremptória e absurdamente colocada sobre as cabeças.

Porque o trabalho forçado sempre existiu e foi imposto ao longo de todos estes séculos, em especial aos prisioneiros de guerra e às populações subjugadas em guerras que também são negócios, populações intensamente desprezadas pelo ódio e oprimidas pela vingança dos povos vencedores.

Na Alemanha Nazi, o trabalho forçado nos campos de concentração fez lucrar empresas como a Siemens, a Volkswagen, a BMW, a Bayer ou o Deutsche Bank, entre outras. Nos campos Gulag, na União Soviética, na «Ferrovia da Morte», na Birmânia, durante a guerra do Pacífico, no «trabalho de compensação» que foi imposto pelos Aliados a mais de 4.000.000 prisioneiros de guerra alemães, a escravatura moderna do século XX continuou a ceifar e a consumir as vidas, em troco do lucro.

O trabalho morto, a que tantos preferem chamar «capital» (pois sempre é um nome mais abstracto e delicado), essas forças de trabalho mortas e convertidas em dinheiro sugam vorazmente as forças do trabalho vivo como um ancestral vampiro sempre sequioso de um novo sangue para a sua velha e repelente carcaça.
 
Ele é como um autómato, velha carcaça do desejo sem alma que precisa sempre de mais e mais e mais para se manter de pé e as suas forças são como um cancro, um fluxo de voracidade mortal que é monstruoso e imparável e que ambiciona sempre o fútil e o inútil (as rendas, os casacos, os véus ou as marcas) em sacrifício do que é mais sagrado e intocável, a imprevisível vida humana, e assim floresce o comércio subtil e obsceno dos que trocam a alma por ouro, a verdade pelas aparências e o coração por quinquilharias.

Veja as palavras de M. Otley, director de uma fábrica de tapeçarias em Borough, no século XIX, em Inglaterra:

«Uma lei que nos concedesse horas de trabalho das seis da manhã às nove da noite seria muito do nosso gosto; mas as horas do Factory Act, das seis da manhã às seis da tarde, não nos convêm. Paramos a máquina durante o almoço. Quanto à perda de papel e de cores ocasionada por esta paragem, nem vale a pena falar nisso.» (2)
 
E ainda hoje, sem remédio, são muitos os que trocam a consciência pelo conforto.
 
Você bem poderá até dizer, de um homem de sucesso: «Teve uma vida boa.»

Trabalhador incansável, homem de carreira reconhecida, proprietário de numerosos bens e possuidor de diversos automóveis, ao longo da sua vida, é possível que a sua alma não tivesse muitos outros projectos, para além do conforto social e material.

Este homem morre, como todos os outros.

Viria com o desejo de se martelar num outro fogo, compor numa outra efígie, viajar por outras estepes?
 
Que será de nós, enquanto se venderem e trocarem por dinheiro e por bens os corpos, as vidas e as forças?
 
Objectos estrangeiros a nós mesmos, desconhecidos das nossas almas autênticas e dos nossos desejos mais reais e absolutos, como poderemos ser mais que vagabundos e
sem-abrigo, farrapos ou sombras errantes sobre a triste arena do mundo?
 
Porque muito do que hoje temos neste mundo actual se resume ainda a um comércio criminoso, tantas vezes bárbaro, e outras simplesmente subtil - ou discreto.

 
Rapaz de dez anos numa fábrica de alumínio em Bangladesh (3)




(1) Karl Marx, O Capital, Vol. I, Capítulo X-II, «O capital faminto de sobretrabalho. Boiardo e fabricante.»
(2) idem, Capítulo X-III, «O dia de trabalho nos ramos industriais ingleses em que a exploração não é limitada por lei.»
(3) http://thecoveringhouse.org/act-challenge-modern-slavery-an-overview/
 

Forças cujos êmbolos funcionam fora das vontades

 
A humanidade faz passar de mão em mão, de geração em geração, de povo em povo, de gente em gente, de história em história, o fardo amargo da miséria e da infelicidade, num movimento cuja máquina parece obedecer, de forma cega e aritmética, a forças cujos êmbolos funcionam fora das vontades.
 
Está por compreender e por travar o movimento desta máquina infernal ou deste monstro sombrio e subterrâneo que decanta a frustração em violência, o ciúme em crime, o desejo em homicídio, a passagem pela dor insuportável na perfeita surdez a qualquer  dor, a miséria na concupiscência, a inveja em destruição, a impotência em vingança e a humilhação na ferocidade.
 
Está por compreender e por descrever em verdadeiras linhas de água essa tremenda máquina de somar do inferno em que o desejo ganha o corpo de um heroinómano  a quem a dose de prazer anterior tem de ser sempre acrescentada para poder passar à sensibilidade, isto é, ao facto.
 
Porque é nesta humanidade que encontramos as prodigiosas máquinas de somar dos gordos, dos jogadores, dos «apaixonados», dos conquistadores imparáveis, dos mafiosos, dos perfeitos virtuosos,  dos drogados, dos alcoólicos, dos trabalhadores incansáveis, dos criminosos, dos bondosos e dos capitais.
 
Como é que, na senda para o inferno e na escadaria descendente das fraquezas, da violência, da vaidade, da riqueza, da dor ou do vício, a sensibilidade se insensibiliza e o corpo e a alma começam a fechar as suas portas, escurecendo como vãos de escada, fossilizando como mortos-vivos, envelhecendo para dentro como fruta que apodrece e decaindo até ao nojo como o ar irrespirável de uma sombria casa abandonada?
 
Como é que o coração pode deixar de sentir - tal como as pernas deixam de andar, quando ficam paradas -, e como é que a alma pode deixar de ouvir - tal como o ouvido fica surdo, quando não é desperto -, e a cabeça deixar de pensar - tal como a gangrena que tem por destino progredir até à morte, até ao deserto?
 
Sobre as tábuas do chão dessa casa vazia e decadente correm às cegas os ratos e as baratas de um desejo mecânico a quem roubaram os olhos, os ouvidos, o coração e a alma e que anda como andam as pernas de um animal a quem tenham cortado a cabeça - correndo num estéril esforço de morte, numa última alucinação.
 
Meu caro extraterrestre, meu querido leitor não-humano, você, que porventura nos observa, não gostaria de escrever um pequeno tratado, um breve opúsculo que nos explicasse, a nós e aos prisioneiros e reféns de um tal mundo, a real e verdadeira mecânica humana dos afectos?
 
Teríamos então uma bela profilaxia da desumanidade.

A trave mestra do nojo e do medo


Escapando ao jugo do Império Britânico, a República Islâmica do Paquistão formou-se em 1947.

A partir dessa data cresceu de trinta e quatro milhões para cento e oitenta milhões de pessoas e é hoje uma economia em crescimento, constituindo o sexto país mais populoso do mundo.

Detém, além disso, uma das maiores forças armadas do mundo, de carácter inteiramente voluntário, aliás, a quarta maior, que tem estado entre os maiores contribuintes de tropas para as operações de manutenção de paz das Nações Unidas. É uma das potências nucleares do mundo, a seguir aos Estados Unidos, Rússia, França, Reino Unido, China e Índia, e antes da Coreia do Norte, de Israel e do Irão.
 
As terras do Paquistão são tão variadas como as suas línguas faladas, que são mais de sessenta. Desde as praias arenosas, lagunas e manguezais, na costa meridional, até às florestas temperadas; desde os desertos de Thar e do Baluchistão, aos picos gelados dos Himalaias e às montanhas brancas de que se contam mais de cem picos acima dos sete mil metros; desde as planícies férteis do Panjabe e do Sinde, às cidades populosas em que as gentes anónimas formigam; o Paquistão é atravessado de norte a sul pelo poderoso rio Indo que desce do planalto tibetano até desaguar no mar Arábico. 
 
Foi em 2009 no Paquistão que Malala Yousafzai, uma menina então com doze anos, desafiou o domínio dos Talibã no vale do Swat, escrevendo para a BBC um blogue sob pseudónimo onde narrava o dia-a-dia da província ocupada. Em 2012, com apenas quinze anos e quando entrava num autocarro escolar, Malala foi vítima de um ataque armado por parte de um grupo Talibã que a chamou pelo nome antes de disparar sobre o seu rosto e a sua cabeça.

Os Talibã, tal como muitos outros grupos radicais islâmicos, são contra a escolarização das meninas, mas este acontecimento trágico, um entre muitos que todos os dias anonimamente se repetem, gerou uma onda de solidariedade na comunidade internacional que culminou com a atribuição do Prémio Nobel da Paz a Malala.

«Vamos pegar nos nossos livros e nas nossos canetas. Estas são as nossas armas mais poderosas. Uma criança, um professor, uma caneta e um livro podem mudar o mundo.»

Foram as palavras de Malala em Julho de 2013 na Assembleia da Juventude na Organização das Nações Unidas em Nova Iorque.

Contudo, o governo do Paquistão não tem travado as perseguições religiosas e políticas cujos autores são deixados impunes pela justiça do país.

Ainda em Março de 2015, os paquistaneses cristãos estiveram de luto pelos ataques bombistas que deixaram quinze mortos e mais de oitenta feridos nas igrejas de Lahore, dois anos passados sobre o trágico ataque suicida que deixou oitenta mortos e mais de cem feridos numa igreja anglicana de Peshawar.

Abundam, por outro lado, os chamados «crimes de honra», que afectam as franjas mais vulneráveis da população e quanto aos quais o poder estatal não interfere.

Centenas de mulheres são assassinadas anualmente no Paquistão, acusadas desses crimes.

Em Lahore, Farzana Parveen, com vinte e cinco anos e grávida de três meses, foi apedrejada até à morte em plena luz do dia pelo «crime» de casar com o homem que amava, indo contra a vontade da sua família.

Foi morta por vinte homens da sua família, entre os quais o pai e os irmãos, que a agrediram com bastões e tijolos, em frente de uma multidão e de um conjunto de representantes do tribunal de Lahore.

Desta violência, que respira e dança ao deus-dará, sem freio nem escalpe, é desmesuradamente triste o teatro da crueldade. São pobres e sorvidas de qualquer alma as cenas dos crimes.

No chão de terra batida e cinzenta estão as manchas de sangue e urina e um caixote velho de transportar fruta, mais os tijolos e as pedras desfeitos. Nesse chão descarnado é que ficou o corpo encolhido que expõe um rosto negro e torturado e que se envolve no véu manchado que agora é um trapo.

Ao lado da cabeça e do rosto macerado da mulher vê-se intacta uma sapatilha brilhante, preta e rosa, com um laço vermelho, essa sapatilha da mulher caída, que ali ficou, fora do pé.

«Ser humano, que vales tu?... És só mais um que morre.»

E em redor a multidão já só parece um bando imóvel de baratas.
 
Os homens fodem com quem o corpo lhes permite, ou são, também eles, na prisão, na maldade e na guerra, violados pela boca ou pelo cu, mas as mulheres, um pouco por todo o mundo e em especial nestes regimes desiguais e repressivos, fodem com quem as compra, com quem lhes paga, com quem as alimenta, lhes bate ou simplesmente ameaça de morte.
 
Como podem continuar a receber nos corpos tais lobos, como podem continuar a parir uma tal humanidade e a dar o seu leite e o seu sangue a tais abutres?
 
Que esperança tão paradoxal e tão louca é que as sustenta, que amor transcendental ou esquizofrénico é que as impele, que não as deixa estrangular os filhos da tortura e da vergonha logo à nascença?
 
Guardam nas almas o vómito e o terror por quem lhes penetra e coloniza os corpos e assim formam de um modo perfeitamente contínuo e involuntário esta imensa trave mestra do nojo e do medo que sustenta o arco da violência no mundo, as mulheres - ou melhor, estas dolorosas mulheres impensáveis.