Suave e liberto, 

o corpo arde, depois de dançar.

Soube de músculos que não tinha.

Experimentou novas dores.

Descobriu no espelho uma altivez inédita

e dissolveu no esforço muscular

e na concentração absorvente

o coração.

Sim, moeu-se grão a grão 

essa angústia pungente de existir

e de amar sem nenhum futuro.

Moeu-se até ao líquido a angústia 

e o coração e onde está 

agora o coração?

Na suave paisagem noctívaga que se entrevê

dançante pelos vidros do carro

há essa coisa meio criança 

de ter um interesse desprendido 

e lúdico em todas as coisas.

Frieza. Neutralidade. Simples 

infância abstracta de ver sem pensar.

Coisa livre e leve se evola

da estrada que gira

com seus traços brancos no fundo negro

suas mil luzes de paisagem imensa

mar obscuro, pequenos pilares riscados

postes, pontes, quadradinhos volantes

que são as luzes trazeiras dos carros

aparentes peças de lego

em tantos paralelepípedos móveis:

as novas paisagens do abstracto.

Arde, corpo, arde.

Dança até moeres o grão de toda a angústia.

Tudo o que sofreste de repente não faz sentido.

Há só esta coisa infantil, 

esta neutra candura das cores volantes.

Talvez a vida.


As belas verdades que por vezes saem da boca dos amigos

"Para nós, simples terrenos que não temos conexões com o outro mundo, é difícil especular sobre o futuro."



poema diminutivo: o grito

 


Já foi tempo em que o grito

era arma de guerra - e gelava de medo

o corpo do combate inimigo.

O mundo dos homens, das mulheres, 

das crianças e dos animais aflitos.

O mundo dos desamparados da sorte.

O mundo da dor infinita sem consolo.

O mundo da ambição e da indiferença.

O mundo para quem a trégua é só cansaço,

sono, álcool, morte.

Onde a paz foi trocada por coisas,

a alegria por enfeites, 

os valores por notas de dinheiro,

a dignidade por prestígio.

Para este mundo, onde está o grito?

Onde está a arma de guerra

com que rasgo a minha carne

como se fosse a roupa que não quero envergar?

O grito que me salve da vergonha

de compactuar nos crimes com a impotência,

de ser cúmplice por inacção.

A arma, onde está, 

para fazer frente à ignomínia?

Cada um quer simplesmente

viver uma boa vida, uma vida boa,

cada um à sua maneira.

Aqui e ali, caem mísseis sobre casas algures.

Aqui e ali, a miséria grassa ao ponto da fome.

Aqui e ali, há quem esteja no lugar errado.

Aqui e ali, há quem trabalhe todos os dias

sem ganhar tecto nem pão.

E eu, que também gostaria de viver uma boa vida,

depois de ter pensado muito sobre isso,

e pensado até que a boa vida

só pode ser vivida para deus

e sem qualquer espécie de exigência,

eu por mim gostaria apenas

de fazer greve desta existência,

uma greve conjunta, revolucionária,

uma greve de milhões que fizesse tremer tudo

de uma ponta à outra dos oceanos

e que com ela mudássemos o mundo,

mas tenho vários problemas:

quanto às ideias teóricas

que tenho sobre o valor do trabalho 

a tirania selvática dos mercados

a possível transmigração das almas

e até deus

elas soam tão estranhas que parecem delírios,

ninguém as ouve,

e quanto às ideias práticas,

parece-me que não terei nenhuma.