A base e o topo das esferas




Junte-se a mim, meu caro Extraterrestre.

Procuro um mapa mundi em que a América do Norte esteja do lado direito e a Ásia do lado esquerdo, para perceber a relação entre o Alasca e a Rússia.

Você sabia que o Alasca foi comprado pelos Estados Unidos da América ao Império Russo em 1867 por sete milhões de dólares, isto é, por cinco centavos o hectare?

Os seres humanos contudo consideram que, no caso da África e a América do Sul estarem em cima, e a Europa e a América do Norte em baixo, o mapa mundi se encontra de pernas para o ar.

Fique sabendo, meu caro Extraterrestre, que, se por acaso o seu corpo for uma esfera lisa e luminosa rolando suavemente no espaço, pernas e cabeça serão dois órgãos que para nós sempre terá, seja qual for a realidade dos factos.










Jamais




Olhamos em volta, meu caro Extraterrestre, e o que vemos?

Onde está o advento desse mundo com que sonhámos e em que chegámos a acreditar, na nossa juventude, esse mundo em que os seres humanos seriam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria?

Onde está o mundo que foi proclamado como a mais alta inspiração do homem, o mundo em que acima de tudo seria reconhecida a dignidade de todos os membros da espécie humana, esse mundo real e efectivo em que um regime de direito teria a força necessária para defender a paz, a justiça e a liberdade?

Não passam de vãs palavras, de vãos pensamentos, de fúteis entusiasmos e inconsequentes arroubos os decretos unânimes da nossa comum consciência?

Continuará, pelo mundo, a lenta e penosa marcha dos escravos e dos explorados que no seu trabalho oferecem a vida a troco do pão?

Um animal a comer outro animal. Será este o facto absurdo que nunca seremos capazes de superar?

Não passaremos jamais de carne esfolada?

Continuarão a fome, o medo e a miséria a dobrar o dorso das nossas almas orgulhosas e altivas, para todo o sempre?

Meu querido Extraterrestre, se você soubesse o desgosto terrível que este mundo me inspira!...

Sinto-me exilado do mundo, como um expatriado do paraíso.

O paraíso é o esplendor.

Por todo o lado, meu caro Extraterrestre, por todo o lado aqui se encontra o esplendor.

Uma luz verdadeira e pungente.

Uma luz estonteante, magnífica.

E a toda a hora você tropeça na luz que o deixa de rastos com um excesso de infinito, com uma incomensurabilidade e uma tal subtileza, uma tal filigrana que...

Veja, meu caro Extraterrestre, por muito moderno que você seja, por mais rigorosa que tenha sido a sua educação filosófica e o adestramento do seu sentido crítico, sim, meu caro Extraterrestre, e ainda que você tenha nascido numa família de marxistas ateus, de materialistas pessimistas, de alcoólicos cépticos, de cientistas agnósticos, de devotos da Nossa Senhora de Fátima, de católicos progressistas ou de uma mistura mais ou menos esquizofrénica de tudo isto, por muito que você se tenha exercitado durante toda a sua infância e adolescência, diante de um tal caos, na árdua tarefa de suspender o juízo de forma metódica e organizada, tranquila, despojada, neutra, desprovida de tendências e de paixões, ainda assim, meu caro Extraterrestre, sempre que tropeçar na luz, você pensará em Deus.

Um Deus que é esta terra da abundância e da beleza infinita mas onde lavra uma absurda crueldade e um sofrimento gratuito, desmesurado, incompreensível, injustificável - e é esta a pátria de que estou permanentemente expulso, é esta a qualidade insuportável do meu exílio.

Porque haveria você de querer participar numa tal dor?

Do céu, caiem bombas sobre os povos indefesos.

Há quem morra debaixo dos escombros. Há quem fique sem os braços e as pernas.

Nas guerras actuais e tremendas, bárbaras, selvagens, terrivelmente mortíferas, o nosso chão está todo manchado de sangue.

Por mais que lavemos as nossas casas, elas não ficam lavadas.

Quem é que nasce livre?

Com que direitos?

As vidas jogam-se como em tabuleiros de sorte e azar. Todas as décadas nos arrependemos do que não chegámos a saber, e que devíamos ter sabido antes. É tão fácil ver como tantos homens prezam mais o ouro que a compaixão e como trocam a dignidade pelo prestígio!... Mas a consciência chega-nos a conta-gotas - e cada revelação pode ser uma sessão de tortura. Num ápice o nosso corpo se desagrega e a vida nos foge. Num instante, todos nós, os orgulhosos e os simples, os escravos e os tiranos, os ricos e os pobres, os livres e os oprimidos, as bestas e os puros, num instante seremos arrasados pela morte, ou pior, pelas doenças, pela loucura e pela falta de forças. 

Mas por todo o lado, por todo o lado o esplendor nos recorda como uma marca de fogo ardendo sem intervalos na carne que esta não pode ser a nossa pátria original, que é a um outro mundo que pertencemos.

Ah!... Meu querido e paciente Extraterrestre, não queira testemunhar uma tal dor!...


Uma das esculturas milenares destruídas pelo Daesh  em 2015
no Palácio do Rei Sargón II, na cidade iraquiana de Dur Sharrukin