Nós os humanos 2...



Meu querido Extraterrestre,

Entre nós os humanos é Karl Marx quem pergunta, em 1867, o que é um dia de trabalho.

E o que é um dia de trabalho, meu querido Extraterrestre?

Será que a si lhe sobra, depois de cumpridas todas as suas obrigações, depois de se lavar, depois de comer, depois de dormir todas aquelas horas que são essenciais para se pôr outra vez em andamento, será que a si lhe sobra, como reclamou Marx, tempo para a instrução, para pensar, para apanhar sol e para passear ao ar livre, para realizar funções sociais, familiares, comunitárias, altruístas ou de amizade, tempo para o livre jogo das forças físicas e intelectuais?

Que não se esgotem as suas forças, meu querido Extraterrestre!

Que as suas forças lhe permitam voar até nós, que estamos reféns de um sistema que nos devora, ou que se auto-devora!

Não andará você a roubar horas ao sono ou a viver como um eremita, só para conseguir trabalhar e cumprir fragmentos, ou melhor, pedaços, de um sonho?

Será que a si também lhe é fornecido alimento como quem fornece carvão a um forno ou óleo e lubrificante a uma máquina?

Talvez vocês tenham dias de quarenta horas, no vosso sistema solar, e horas de sono reduzidas a pouco, como os presidentes da república, quem sabe?

Talvez vocês não tenham, nem um sistema neurológico, nem um sistema digestivo!

Talvez vocês não precisem nem de se lavar nem de comer, e sejam mais como fogos-fátuos!

Vocês sim é que hão-de ser os trabalhadores perfeitos, quando chegarem ao nosso planeta!

Quem sabe?

O capital enamorar-se-à de tal modo pelas novas forças de trabalho extraterrestres que conduzirá os humanos em hordas para os fornos de um novo Auchwitz ou então simplesmente taxá-los-á com impostos tremendos, asfixiantes, devoradores e insustentáveis, impostos para os humanos porque trabalham, porque circulam, porque bebem água, porque acendem a luz, porque compram gasolina, porque comem uma pastilha elástica ou simplesmente porque existem (não se admire, porque muito em breve será criado um novo imposto sobre a existência tanto singular, como colectiva, e que virá a ser comummente conhecido como IES e IEC), ficando então o capital enamorado pelas novas forças de trabalho extraterrestres e com todos os dentes de ouro dos humanos guardados em cofres e todos os bens desses restos inúteis da espécie consubstanciados em notas de crédito e taxas de juro que depois serão totalmente inúteis para os novos fogos-fátuos que não hão-de precisar de nenhum dos nossos produtos, porque afinal os novos fogos-fátuos não têm, nem sistema neurológico, nem sistema digestivo (mas quanto a isso só se pensará depois, caso haja ainda algum sistema neurológico remanescente, o que não é provável), e então será o ómega, o infinito, o novo Big-Bang, o erzatz ou o apocalipse ultra-cómico de uma tal cobiça voraz pela mais-valia e pelo lucro, o grande entupimento, o grande excedente, o sublime vómito ou a mega caganeira simbólica de tudo o que foi inventado e que se tornou desnecessário e que será apenas uma tremenda corrente de lixo num planeta deserto de gente, mas habitado pelos novos colonos - os gentis e ultra-trabalhadores e trémulos luminescentes recém-chegados fogos-fátuos!

Sim, porque por aqui neste doce planeta, meu querido Extraterrestre, os capitais investidos, ou em dívida, na sua voracidade por trabalho extra, por criar lucro ou por pagar o juro da dívida entretanto contraída em tantos países à beira da bancarrota e onde as novas gerações nascem, como os antigos escravos, com a grilheta nos pés, por aqui no suave planeta Terra os capitais são como enormes monstros antropofágicos que se encarregam de devorar os homens, sugando as forças de trabalho nem que seja à custa da duração da vida do trabalhador, e, estando ele com o pensamento entorpecido, seja pelo cansaço, seja pela fome, pelo açúcar ou pelo excesso de informação, alucinam de tal forma a sua humana tendência para desejar que depois a única coisa que ele consegue fazer mesmo após trabalhar até ao limite das suas forças é consumir agonicamente os produtos que o capital precisa de escoar, ainda que sejam inúteis, ridículos, encarecidos ou em excesso. Daí que hoje em dia se produza, para o mesmo produto, o modelo número um, o modelo número dois, o modelo número três... Por exemplo, um telefone um, um telefone dois, um telefone três... E os novos humanos são como ratos que correm em rodas, com os olhos fixos nestas novas jóias, tal como um burro que carrega o fardo na mira da cenoura que tem à frente do nariz.

Você mesmo poderá ver com os seus olhos ou outro órgão que lhe sirva para tal, quando aterrar no nosso maravilhoso e azul planeta, a enorme cabeça do capital poisada no mundo, de boca aberta e escancancarada, como um enorme vulcão. Mal você chegar à Terra, garanto-lhe, será isto a primeira coisa que verá - uma enorme cabeça - porque o capital é só cabeça, uma cabeça e um cu, em ligação directa, totalmente eficaz!...

A língua que sai da boca aberta, colada ao chão, é a enorme rampa por onde seguem todos os seres humanos em fila, uns atrás dos outros. Uns vão de fato e gravata, bem vestidos, com os canudos da universidade na mão, e outros vão descalços, de mãos vazias e amarradas. Uns vão de barriga cheia e outros vão de estômago vazio; uns vão risonhos e outros em lágrimas; mas todos descem pela mesma garganta.

Aí vão eles!...

E saem todos pelo mesmo ânus, pela mesma enorme cloaca do capital. 

Uns saem de sapatos novos e outros a mastigar. Outros vão ao volante de um Ferrari. Há quem traga apenas mais uma nódoa negra no corpo. Um buraco de bala na testa. Um rasgão na alma. 

No fundo, todos fazem o mesmo caminho, meu querido fogo-fátuo, nem mais, nem menos.

Comidos - e cagados - pelo sublime capital. 


Charles Chaplin, «Tempos Modernos», 1936


Impunidade



Em 14 de Julho de 2008, Omar al-Bashir, nascido em 1944, foi o primeiro presidente a quem foi emitido um mandato internacional de captura pelo Tribunal Penal Internacional de Haia. Apesar das Nações Unidas não classificarem como genocídio o que se passou em Darfur, em 2004, Omar al-Bashir foi acusado pelo Tribunal de Haia de organizar uma campanha de assassínios em massa, violações e pilhagem contra a população civil de Darfur. Em 2004, Colin Powell, Secretário de Estado dos Estados Unidos, tinha descrito como genocídio o ataque armado do governo sudanês contra os civis, mas nenhum outro membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas seguiu o seu exemplo. Omar al-Bashir já foi eleito por maioria absoluta três vezes consecutivas em eleições que são suspeitas de corrupção, e, em 2015, viajou até à África do Sul, que ignorou o mandato de captura internacional e que o deixou partir impunemente, tal como, em 2010, no Quénia.

A guerra em Darfur começou em Fevereiro de 2003 quando os grupos rebeldes que pertenciam ao «Movimento de Libertação Sudanesa» e ao «Movimento para a Justiça e Igualdade» começaram a lutar contra o governo do Sudão, que acusavam de oprimir e descriminar a população não-árabe da região. Lutaram inicialmente contra o exército sudanês e depois contra milícias recrutadas entre africanos arabizados e beduínos e contra o grupo Janjaweed, que o governo afirmou não financiar, contra a evidência dos factos. 

Logo depois da entrada dos Janjaweed no conflito, uma milícia composta por elementos de tribos nómadas arábes do Sudão, que sempre estiveram em conflito com a população sedentária de Darfur na luta pela água e pelas terras, começaram a ser denunciadas as violações de guerra sistemáticas perpetradas pelo grupo, de que foram alvo inclusivamente crianças de dois anos. Esta estratégia de guerra foi indicada como consistente com o objectivo governamental de eliminar a presença de africanos negros e não-arábes de Darfur. O «Washington Post Foreign Service» entrevistou várias vítimas comprovadas destes ataques que reportaram como os termos «abid» (escrava) e «zurga» (negra) foram sistematicamente usados. A Sawelah Suliman terão dito: «Rapariga negra, tu és demasiado escura. És como um cão. Queremos fazer-te um bebé claro.» (1)

O ministro dos assuntos humanitários do Sudão, Ahmed Haroun, e o líder da milícia Janjaweed, Ali Hushayb, foram acusados pelo Tribunal de Haia por cinquenta e um crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Mas o Sudão não reconhece a jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Ahmed Haroun terá dito que não se sente culpado, que a sua consciência está limpa e que está pronto para se defender. (2)

Não se sabe ao todo quantos milhares de pessoas morreram no conflito, ou por violência directa, ou por fome e desidratação, durante as fugas, ou por doença. Ascenderão, com toda a probabilidade, a mais de meio milhão de pessoas. Ainda em Setembro de 2016 é relatado que o governo sudanês terá lançado armas químicas sobre a população civil de Darfur, tendo morto mais de duzentas e cinquenta pessoas, na sua maioria crianças. O conflito tem gerado uma enorme crise de refugiados, com mais de dois milhões de pessoas deslocadas, a maioria em campos esquálidos em Darfur ou no Chade, aos quais as equipas de ajuda humanitária quase não conseguem acesso. O Sudão é um dos maiores países de África e um dos mais ricos em petróleo, urânio e gás natural, ainda que a sua população seja uma das mais pobres do mundo. A China, com amplos interesses e importantes cotas na exploração do petróleo sudanês, nega o tráfico de armas que os observadores identificam e que têm proveniência chinesa.

Que voz podemos encontrar para o testemunho de um tal desastre?

Que voz para o desespero por um mundo de onde Deus desertou?

Quem nos fala hoje de Darfur?

Até a notícia urgente das tragédias do mundo flutua ao sabor das modas e dos caprichos dos grandes!...

Tão culpados como os criminosos, são as testemunhas que baixam os olhos.

Tão torpes como os carrascos, são os que ficam em silêncio e de mãos imóveis.

Que reparação para as crianças violadas e para os inocentes mortos e desmembrados?

Que condenação para o ódio, para as casas em fogo, para os pés em sangue?

A União Africana declarou que 2016 fosse o ano dos Direitos Humanos em África.

Mas todas as palavras por cumprir deveriam arder-nos na garganta e deixar em cinzas a nossa alma inteira, para o resto da eternidade.



Vilas destruídas em Agosto de 2004










(1) http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/articles/A16001-2004Jun29.html

(2) http://news.bbc.co.uk/2/hi/africa/6404467.stm

Pensei que era um poema




Meu querido Extraterrestre,
pensei que era um poema.
- "Breitbart"
baluarte
da "alt-right" -
mas era só
uma notícia de jornal
sobre um site americano
que também podia ser
colombiano coreano
ucraniano angolano
nigeriano peruano
iraniano australiano
humano ou desumano
afinal um desses tantos
sites e sítios
que destilam
veneno contra feministas
mulheres feias
tristes ou velhas
raparigas
demasiado boas
contra negros
contra índios
contra russos e ateus
e os que levam no cu
segundo eles
transsexuais e mexicanos
muçulmanos mulatos
travestis putas e pobres
revoltados inconformados
activistas e progressistas
esquerdistas comunistas
e fervor por chauvinistas
por racistas
por brancos
por ricos
por católicos
por liberalistas
por machos e por machistas
altruístas
"Breitbart"
baluarte
da "alt-right"
que giro
pensei que era um poema
e que até podia 
continuar
rá-te ráte
bright blight
estandarte
de ruindarte
byte bite 
fight plyght
e que belo fraque
só que este mundo 
e gireza - de facto -
meu querido Extraterrestre,
não combinam.







Nós os humanos 1...




Será que você, meu caro Extraterrestre, um dia colocando os pés na terra (se é que os tem), será capaz de identificar um Humano?

Hoje em dia entre nós os humanos é bastante comum, em todas as áreas, que um grupo isolado se componha de elementos homogéneos, formando, como tão bem analisou esse filósofo visionário, o extraordinário Karl Marx, «um órgão particular de um mecanismo total». (1) Assim, é possível observar que uma família, até mesmo um casal, uma direcção, um grupo de operários, uma associação de estudantes, uma escola, uma linha de montagem, um departamento, uma secção de hospital ou uma secretaria tendem a comportar-se como membros ou órgãos de mecanismos que os transcendem, o que se nota em particular no sintoma de uma degradação das actividades propriamente individuais e criativas (tantas vezes inúteis, gratuitas, ou simplesmente prolongadas), a favor das actividades colectivas e mecânicas, amiúde repetitivas, regulares e irreflectidas, mas eficientes e rápidas.

A tendência para nos compormos assim em peças de máquinas ou órgãos de mecanismos obedece sempre a um princípio de eficácia, como tão bem observou Karl Marx. Foi também ele quem observou que, como membro do trabalhador colectivo (a fábrica, ou o sistema), o trabalhador parcelar se torna tanto mais perfeito quanto mais parcelar e incompleto. Um trabalhador assim não exige tanto esforço de educação, não consome tanto investimento e não tem, consequentemente, tanto valor, segundo este sistema. Como peça de máquina ele é, não só mais eficiente, como mais barato. O que resulta em que, no produto final, que em princípio mantém o mesmo valor, o custo de produção diminuiu na mesma medida em que o lucro aumentou. Isto foi bom para todos, ao que parece. Há cada vez mais abundância e lixo no mundo. Por isso, todos tentamos cooperar o melhor possível num tão maravilhoso sistema, nesta criação benemérita e extraordinária do homem moderno, o capitalismo. Haverá porventura sequer uma organização alternativa, meu caro Extraterrestre? Decerto que vocês também, seres luminosos, gentis e resplandecentes, inventaram um capitalismo que vos permitiu construir as vossas naves espaciais, à custa de algum excedente na produção de outros bens mais elementares, ou não é verdade?

Confesso-lhe, a única coisa que me preocupa neste momento é que, se nós os humanos, enquanto indivíduos - isto é, corpos separados -, com tanta facilidade tomamos parte em corpos maiores e perfeitamente organizados, transformando-nos então, ao contrário de outros seres autónomos e individualizados - em órgãos, membros e mesmo peças mecânicas de máquinas ou de engrenagens, se nós os humanos assim nos compomos, não como seres distintos uns dos outros, mas como células de um mesmo tecido, não se dará porventura o caso de estarem vocês os Extraterrestres a tentar contactar uma central nuclear, uma capital de distrito, uma rede de auto-estradas, um aeroporto ou uma fábrica de telemóveis, como se fossem um de nós?












(1) Marx, O Capital, Vol. I, Cap. XIV «O mecanismo geral da manufactura. As duas formas fundamentais: manufactura heterogénea e manufactura em série», p. 218.


Escravos sem voz e sem glória



Meu caro Extraterrestre, já dizia Marx, sobre as condições de trabalho nas fábricas e oficinas europeias há mais de cento e cinquenta anos:

«A tendência imanente da produção capitalista consiste em apropriar-se do trabalho vinte e quatro horas por dia; e como isto é fisicamente impossível no caso de querer explorar sempre as mesmas forças sem interrupção, torna-se preciso, para triunfar deste obstáculo físico, uma alternância entre as forças de trabalho empregadas de noite e as forças de trabalho empregadas de dia, alternância esta que se pode obter por diversos métodos. (...) Todos sabem que este sistema de turnos predominava nos primeiros anos da indústria algodoeira inglesa e que o processo de trabalho ininterrupto durante as horas do dia e da noite é aplicado ainda em muitos ramos industriais da Inglaterra, País de Gales e Escócia. O pessoal compõe-se de homens e mulheres, adultos e crianças dos dois sexos, entre os seis e os dezasseis anos.»

Nos tempos que correm, meu caro Extraterrestre, apesar de progressos inestimáveis em pequenos pontos do globo no que diz respeito aos limites impostos à exploração do trabalho, em defesa da dignidade e da vida humana, são muitos os países e lugares onde se exploram sem escrúpulos e parco ou nenhum pagamento a vida e as horas de adultos e crianças. Onde a exploração do trabalho ainda se encontra protegida por leis que são o orgulho dos povos ditos civilizados, esses mesmos cidadãos educados e altivos que tais leis protegem nunca saberão exactamente por que mãos foram confeccionados os seus ténis Nike ou as suas elegantes calças de ganga. Para alguns, trata-se de uma promiscuidade insuportável e mesmo de um ex-libris da impotência individual perante o mundo. Observe este facto, meu querido Extraterrestre. Hoje, em 2016, na Turquia, chegámos ao ponto de descobrir que fábricas que fornecem roupa à Mango, à Zara e à Marks  & Spencer, grandes marcas internacionais, que vestem milhões de pessoas, estão a empregar crianças sírias a menos de uma libra por hora, crianças que trabalham doze horas por dia em condições absolutamente medonhas!... Pobres gigantes do comércio de roupa ocidental, que não sabiam de nada!... Eles monotorizam e inspeccionam regularmente as suas fábricas, eles querem as melhores condições para os seus trabalhadores!... Simplesmente deslocam as fábricas para lugares onde a exploração do trabalho não está assim tão regulada... mas que mal é que isso tem?... Onde há leis de trabalho grassa o desemprego, à medida que os capitais se escapam para onde possam sugar a energia dos povos. Mas então não é claro que essa gente está num outro patamar, um patamar em que uma libra já vale muito - ou não é?... A indústria multinacional levou-lhes, não a exploração, mas o progresso. É realmente chocante que sejam as crianças sírias ou os refugiados sírios, que fugiram de uma guerra tão medonha e perante a qual somos tão impotentes, mas se forem ciganos, chineses, ou indianos, ou tailandeses, ou nigerianos, qual é o problema?... Não é a lei da concorrência, da mais-valia e da baixa de preços? Não resultará tudo, depois de algumas inevitáveis dores de crescimento, num maravilhoso progresso? E isso não é bom, mas realmente muito bom e maravilhoso para todos? Sempre os pobres têm alguma coisa, e os ricos um pouco mais.

Já citava Marx: «Os nossos escravos brancos são vítimas do trabalho que os leva à sepultura; desgastam-se e morrem, sem tambor nem trombeta.» (1)








(1) Marx, O Capital, Vol. I, Cap. X «O dia de trabalho», p. 161, citação do periódico Morning Star, 23-06-1863.

A velha usura e os novos escravos



A usura é dos procedimentos humanos mais antigos, desde que se inventou a moeda, ou o dinheiro.

É realmente fantástico, meu caro Extraterrestre, que o poder da abstracção humana tenha atingido aquele ponto em que deixámos de trocar serviços por bens ou por outros serviços e passámos a fazer as trocas que são salutares e imprescindíveis para a nossa felicidade e sobrevivência por meio de um símbolo abstracto do valor, isto é, um número. 

Podemos traduzi-lo em ouro, botões, contas de vidro ou papelinhos, pouco interessa. O que nos interessa a nós em particular neste momento é observar como, a partir do momento em que se criou tal facilidade (porque seria uma dificuldade, se eu precisasse dos seus feijões, e tivesse apenas vacas para a troca, e você precisasse, pelo contrário, de lã, seria uma real dificuldade estabelecer entre nós uma relação de comércio), estava eu a dizer, a partir do momento em que se criou uma tal facilidade, logo pululou por todo o lado uma espécie bastante comum de oportunistas que se caracteriza por uma rápida e básica esperteza dirigida a tudo o que é concreto e imediato e quase total ausência de escrúpulos, raciocínio moral ou visão a longo prazo, espécie resiliente, esta, que se dedica a armazenar esses símbolos abstractos, sejam eles ouro, botões, contas de vidro, ou papelinhos, pouco interessa, e a vendê-los a quem deles precise por um valor a que comummente se chama juro e que por sua vez resulta no retorno de todo o ouro, botões, contas de vidro ou papelinhos emprestados a que se soma uma percentagem variável de mais ouro, botões, contas de vidro ou papelinhos, pouco interessa.

Perguntará você, meu querido e inocente Extraterrestre, para que querem as gentes tanto ouro, botões, contas de vidro ou papelinhos?

Só lhe posso dizer que deve ser para forrarem os caixões, no dia em que forem enterrados!

Vivemos nos tempos que correm uma tal desordem económica e política que hoje em dia tanto faz que o cidadão comum leve uma vida sóbria e simples, ou não. Por ele e no seu lugar endividaram-se os próprios governos de cada país que, chicoteados pelas costas e mordidos nas canelas pela máquina financeira que esconde o verdadeiro rosto desta multidão de usurários e bestas internacionais, sugam aos cidadãos até à última gota do valor do seu trabalho, como faziam os antigos senhores feudais endividados aos seus escravos e servos.

Já dizia Marx:

«Enquanto reinar a escravatura, enquanto o sobreproduto for consumido pelo senhor feudal e seu séquito, e proprietários de escravos ou senhores feudais forem presa dos usurários, o modo de produção continuará a ser o mesmo; simplesmente, tornar-se-à mais duro para os trabalhadores. O proprietário de escravos, ou o senhor feudal, endividados, oprimirão ainda mais os seus súbditos na medida em que eles próprios forem oprimidos. Ou ainda, acabam por abrir caminho aos usurários, que se tornam, eles próprios, proprietários ou possuidores de escravos, tais como os cavaleiros da antiga Roma. Os antigos exploradores, cuja exploração era mais ou menos patriarcal, porque era em grande parte um meio de poder político, foram substituídos por oportunistas duros e cobiçosos. Mas o modo de produção não foi modificado em si.» (1)

Hoje em dia chegámos ao ponto em que Estados ditos democráticos e eleitos por sufrágio universal fazem as vezes dos antigos proprietários de escravos e senhores feudais. Agora são os povos inteiros aos milhões que ocupam o lugar dos antigos oprimidos, e os novos escravos nem sequer sabem quem é o seu novo senhor!... Mas houve progressos, meu querido Extraterrestre. Os novos escravos têm mais do que uma capa para cobrir o corpo - e mais do que uma enxerga em que se deitar. Não se lhes pode bater. Têm direito à palavra e não podem ser explorados de sol a sol, sem intervalo. Muito sangue correu para que se conquistassem estes direitos, que é como lhes chamam. Mas os novos escravos vêem-se encurralados nas tramas subtis de outras leis que lhes confiscam a paz, o tempo livre e a esperança, ou mesmo a capacidade para pensar, o que talvez permitisse que se defendessem (mas não é certo).


Quentin Metsys (1514)









(1) Marx, O Capital, Cap. XXXVII «Notas sobre o período pré-capitalista», p. 521.

Sobre o valor instrutivo de um episódio com colher de pau




Nada há de mais curioso e possivelmente de mais repelente para o nosso querido Extraterrestre do que um peculiar aspecto da lógica do desejo humano - chamemos-lhe 
anti-lógica do desejo humano (o que talvez nos deixe escapar por um triz à nossa fatídica incoerência).

Comecemos por uma pequena e singela história, um mínimo exemplo.

Era uma vez uma menina de quatro anos que decidiu que não queria levar os seus brinquedos para a praia.

A menina era uma dessas crianças privilegiadas que têm centenas de brinquedos, sem porventura terem outras coisas que lhes fariam mais falta.

Nem baldes, nem pás, nem moinhos de água, nem redes, nem formas de areia, nem óculos de mergulho, nem bóias, nem patos, nem piscinas, nem bolas, nem barbatanas, a menina não quis nada excepto uma enorme colher de pau, uma enorme colher de pau com pelo menos cinquenta centímetros de comprimento e que era usada para mexer as compotas num enorme panelão.

E assim foi.

A menina foi para a praia com a colher de pau sobre o ombro direito, como se fosse uma picareta.

Na verdade, a menina sentia-se incrivelmente feliz e triunfante, com aquela enorme colher de pau. Toda ela exalava felicidade e orgulho.

Mas a sua alegria durou pouco.

Talvez porque se mostrasse tão contente, ou talvez porque aquela fosse a única colher de pau de toda a praia, foi num abrir e fechar de olhos que a subitamente famosa colher de pau se tornou alvo da cobiça e da rapina de todas as crianças, obrigando a família a uma saída precipitada.

A história foi considerada tão divertida que foi repetida ao longo dos anos, mas o que não deixa de ser realmente notável é como se pode encontrar, numa pequena história tão curta e tão singela, dois elementos fundamentais para a nossa anti-lógica do desejo. 

É que os objectos de desejo são muito menos importantes do que a alegria triunfante exibida por aqueles que os possuem e, a par com este facto, a raridade da oferta e por vezes a dificuldade momentânea da aquisição potenciam o desejo, daí que se possa convencer os seres humanos com menos de nada ou com imagens ardilosas e grosseiras a comprar e a desejar coisas de que não têm qualquer necessidade, como se essas coisas fossem o segredo da sua potencial alegria, e assim há muitos que trabalham e trocam a vida por essas coisas que lhes parecem sobejamente interessantes e porque na verdade foram alvo da manipulação de um instinto tão básico que não lhes aflora esse campo restrito e difícil a que nós, os humanos, tanto gostamos de chamar «consciência».

Enquanto um grupo de humanos «deseja» (ainda que neste caso particular o termo mais rigoroso fosse «cobiça», para não estragar o valor positivo que a actividade de desejar em geral também tem), há sempre um outro grupo que «enriquece».

Pobres dos ocidentais que no tempo da expansão e da colonização foram capazes de zombetar dos selvagens porque trocavam escravos e prisioneiros por contas de vidro, enquanto eles próprios trocavam a vida por pedregulhos de ouro!

Os elementos de cada um dos grupos não escapam a uma predação alternada, porque estão presos numa mesma mecânica, numa mesma máquina. O seu desejo foi capturado por um sistema maior, que se alimenta dele, não como a rapina das crianças da praia se alimentou da visão da portadora feliz da colher de pau, o que seria quase cândido, mas como um parasita que, sorvendo uma outra vida, acabará por colapsar em conjunto com ela.

Você, meu caro Extraterrestre, deve sentir-se tão intimamente repelido com esta nossa actual condição que não quererá sequer aproximar-se, quanto mais contactar-nos.

É o mais certo.

A base e o topo das esferas




Junte-se a mim, meu caro Extraterrestre.

Procuro um mapa mundi em que a América do Norte esteja do lado direito e a Ásia do lado esquerdo, para perceber a relação entre o Alasca e a Rússia.

Você sabia que o Alasca foi comprado pelos Estados Unidos da América ao Império Russo em 1867 por sete milhões de dólares, isto é, por cinco centavos o hectare?

Os seres humanos contudo consideram que, no caso da África e a América do Sul estarem em cima, e a Europa e a América do Norte em baixo, o mapa mundi se encontra de pernas para o ar.

Fique sabendo, meu caro Extraterrestre, que, se por acaso o seu corpo for uma esfera lisa e luminosa rolando suavemente no espaço, pernas e cabeça serão dois órgãos que para nós sempre terá, seja qual for a realidade dos factos.










Jamais




Olhamos em volta, meu caro Extraterrestre, e o que vemos?

Onde está o advento desse mundo com que sonhámos e em que chegámos a acreditar, na nossa juventude, esse mundo em que os seres humanos seriam livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria?

Onde está o mundo que foi proclamado como a mais alta inspiração do homem, o mundo em que acima de tudo seria reconhecida a dignidade de todos os membros da espécie humana, esse mundo real e efectivo em que um regime de direito teria a força necessária para defender a paz, a justiça e a liberdade?

Não passam de vãs palavras, de vãos pensamentos, de fúteis entusiasmos e inconsequentes arroubos os decretos unânimes da nossa comum consciência?

Continuará, pelo mundo, a lenta e penosa marcha dos escravos e dos explorados que no seu trabalho oferecem a vida a troco do pão?

Um animal a comer outro animal. Será este o facto absurdo que nunca seremos capazes de superar?

Não passaremos jamais de carne esfolada?

Continuarão a fome, o medo e a miséria a dobrar o dorso das nossas almas orgulhosas e altivas, para todo o sempre?

Meu querido Extraterrestre, se você soubesse o desgosto terrível que este mundo me inspira!...

Sinto-me exilado do mundo, como um expatriado do paraíso.

O paraíso é o esplendor.

Por todo o lado, meu caro Extraterrestre, por todo o lado aqui se encontra o esplendor.

Uma luz verdadeira e pungente.

Uma luz estonteante, magnífica.

E a toda a hora você tropeça na luz que o deixa de rastos com um excesso de infinito, com uma incomensurabilidade e uma tal subtileza, uma tal filigrana que...

Veja, meu caro Extraterrestre, por muito moderno que você seja, por mais rigorosa que tenha sido a sua educação filosófica e o adestramento do seu sentido crítico, sim, meu caro Extraterrestre, e ainda que você tenha nascido numa família de marxistas ateus, de materialistas pessimistas, de alcoólicos cépticos, de cientistas agnósticos, de devotos da Nossa Senhora de Fátima, de católicos progressistas ou de uma mistura mais ou menos esquizofrénica de tudo isto, por muito que você se tenha exercitado durante toda a sua infância e adolescência, diante de um tal caos, na árdua tarefa de suspender o juízo de forma metódica e organizada, tranquila, despojada, neutra, desprovida de tendências e de paixões, ainda assim, meu caro Extraterrestre, sempre que tropeçar na luz, você pensará em Deus.

Um Deus que é esta terra da abundância e da beleza infinita mas onde lavra uma absurda crueldade e um sofrimento gratuito, desmesurado, incompreensível, injustificável - e é esta a pátria de que estou permanentemente expulso, é esta a qualidade insuportável do meu exílio.

Porque haveria você de querer participar numa tal dor?

Do céu, caiem bombas sobre os povos indefesos.

Há quem morra debaixo dos escombros. Há quem fique sem os braços e as pernas.

Nas guerras actuais e tremendas, bárbaras, selvagens, terrivelmente mortíferas, o nosso chão está todo manchado de sangue.

Por mais que lavemos as nossas casas, elas não ficam lavadas.

Quem é que nasce livre?

Com que direitos?

As vidas jogam-se como em tabuleiros de sorte e azar. Todas as décadas nos arrependemos do que não chegámos a saber, e que devíamos ter sabido antes. É tão fácil ver como tantos homens prezam mais o ouro que a compaixão e como trocam a dignidade pelo prestígio!... Mas a consciência chega-nos a conta-gotas - e cada revelação pode ser uma sessão de tortura. Num ápice o nosso corpo se desagrega e a vida nos foge. Num instante, todos nós, os orgulhosos e os simples, os escravos e os tiranos, os ricos e os pobres, os livres e os oprimidos, as bestas e os puros, num instante seremos arrasados pela morte, ou pior, pelas doenças, pela loucura e pela falta de forças. 

Mas por todo o lado, por todo o lado o esplendor nos recorda como uma marca de fogo ardendo sem intervalos na carne que esta não pode ser a nossa pátria original, que é a um outro mundo que pertencemos.

Ah!... Meu querido e paciente Extraterrestre, não queira testemunhar uma tal dor!...


Uma das esculturas milenares destruídas pelo Daesh  em 2015
no Palácio do Rei Sargón II, na cidade iraquiana de Dur Sharrukin

Que paz? Que protecção?




Como um sonho titubeante e incipiente, o sistema de protecção internacional dos direitos humanos é ainda demasiado frágil, ineficaz.

Que podemos fazer, para além de escrever cartas e participar em acções urgentes, que podemos fazer, nós, os cidadãos comuns que trabalham todos os dias para ganhar o seu tecto e o seu pão e que não dispõem de tantas horas livres, tantas como gostariam, para dedicar a causas urgentes - que podemos fazer?

Se os membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas são eles mesmos estados totalitários e opressivos, e com poder de veto, que sentido podemos dar à eficácia de tais organizações?

O sentido de um não-sentido?

Assim a Rússia e a China vetaram por duas vezes consecutivas, em 2011 e 2012, a resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas para condenar os crimes de assassínio de civis em massa pelo governo sírio de Bashar al-Assad, e, desde então, a marcha de refugiados, feridos, mutilados e cadáveres não cessou de aumentar, até hoje.

A Alemanha, o Azerbaijão, a Colômbia, os Estados Unidos, a França, Guatemala, Marrocos, o Paquistão, Portugal, o Reino Unido, o Togo, a África do Sul e a Índia, todos eles votaram a favor desta resolução que foi simplesmente vetada pela Rússia e pela China, a Rússia por causa dos seus interesses estratégicos na base militar russa de Tartus, na costa mediterrânea da Síria, e porque Damasco é um dos seus maiores compradores de armamento, e a China porque veta sistematicamente as resoluções baseadas "apenas" em motivos e causas humanitárias.

Que país sobrará para Bashar al-Assad e para a sua família, depois da guerra? Um deserto pejado de cadáveres e de poços de petróleo assaltados por gangs de extremistas?

Com que mundo ficaremos, se um chefe é livre de decapitar as mulheres e os homens e as crianças do seu povo e de passar os restantes pelo fio da navalha, desde que esteja «em sua casa»?

É este o estado de barbárie em que nos encontramos, meu caro Extraterrestre.



Bashar al-Assad (1965-)

Porque é que a fotografia de Omran Daqneesh corre o mundo?



Eis os factos.

Desde o final da Segunda Grande Guerra Mundial que não havia tanta gente em busca de refúgio.

Porque é que a fotografia de Omran Daqneesh corre o mundo?

Mais de quatrocentas e setenta mil pessoas morreram na guerra civil da Síria. Destas, cerca de setenta mil morreram devido à falta de mantimentos, cuidados médicos, água limpa ou abrigo. Mas o número de feridos e mutilados chega quase a dois milhões de pessoas.

Porque é que a fotografia de Omran Daqneesh corre o mundo?

Do outro lado da morte, quantos olhos vitrificados agora nos olham a nós que talvez sejamos hoje os falsos vivos?

Haverá terra onde colocar os pés sem ser sobre os corpos enterrados da infâmia, da tortura, da vergonha e da miséria de sermos humanos?

Porque é que a fotografia de Omran Daqneesh corre o mundo?

Será porque está vivo e inteiro o menino imóvel e porque o horror é ainda suportável e se apresenta naquele limite paradoxal em que pode ser olhado?

Seríamos capazes de olhar para Omran Daqneesh se lhe faltasse uma perna, um braço, um pé, um olho, uma mão, uma cabeça, como a tantos, como a tantos, tantos outros?

Porque é que a fotografia de Omran Daqneesh corre o mundo?

A guerra na Síria grita-nos de um modo insuportável como falham as instituições para proteger os direitos daqueles que buscam asilo e para assegurar a aplicação da lei internacional.

Porque é que a fotografia de Omran Daqneesh corre o mundo?

Porque o olhar da pequena criança é como o de um velho que já fez a travessia da morte e do desespero, tantas vezes, mas tantas, tantas, que ficou para lá do desencanto e da dor, para lá da sensibilidade?

Porque o silêncio do seu corpo nos estende aos pés a infinitude do deserto que a sua alma viu e conheceu, e que nós sabemos que existe, e que não podemos esquecer?

Porque é visível, mas tão visível, que a consciência atingiu aquele ponto mais agudo que a faz balançar no extremo do pontão que se abre para a loucura, fazendo oscilar, de um modo tão insuportável quanto injusto, a pequena criança à beira do abismo?

Ou porque a poeira branca que cobre todo o menino, desde os cabelos até aos pezitos nus, é tão irreal que nos fala de um outro mundo, fala-nos de um caos impossível como que de fantasmas e de ruínas que habitam só um remanescente, um pequeno resto remanescente da nossa realidade?

PORQUE É QUE A FOTOGRAFIA DE OMRAN DAQNEESH CORRE O MUNDO?

Porque o banco moderno e cor-de-laranja da ambulância está tão limpo e tão novo como as paredes costumeiras do nosso confortável quotidiano e não se percebe como se acolheu nele o pequeno menino transfigurado, este pedaço imóvel do caos, este disparo vivo de um gémeo e alucinado desespero?

Teremos o direito de olhar para ele, para o pequeno e inocente Omran Daqneesh?

Se todos os homens e mulheres se ajoelhassem ou soçobrassem de mãos unidas junto ao peito em nome dos mortos absurdos e da dor ignóbil e da vergonha e do sangue e da carne desmembrada que a guerra infamemente produz já não haveria mãos que sobrassem para lançar bombas sobre os inocentes desta terra através dos céus.


Omran Daqneesh, Aleppo, 17 de Agosto de 2016

Entre a civilização e a barbárie


O que é a civilização? - perguntará o extraterrestre. Eu, na minha humilde posição de ser humano, um ser humano que se sente despido e sem escudo, no meio do infinito, eu, meu caro e prezado extraterrestre, dir-lhe-ia que a civilização é a paz - e que a civilização é a consciência em acto. Aliás, a justiça em acto. E eu que tive o privilégio de conhecer a paz e de caminhar sozinho no meio da cidade sem medo, dir-lhe-ei o quê? Que a civilização procede pela abdicação do cego egoísmo, a favor de uma proliferação de singularidades? Que é como um campo de flores, uma extensa pradaria, um plano povoado de infinitas diferenças? Que só pela medida da força física do trabalho, de um trabalho mais eficaz, mais rápido, mais valioso, o homem não tem o direito da violência e do domínio sobre a mulher, como acontece por tanto mundo? E que, pela insignificância das suas forças, os velhos, os pobres e as crianças não hão-de ficar para sempre sem voz? Uma consciência em acto não pode ficar indiferente à desigualdade nem regozijar-se à sombra dos lucros que foram esfolados da pele dos pobres, arrancados pela lei do mais forte da força de trabalho dos pobres. Uma consciência em acto não aceita o consolo das falácias que nos prometem os bons futuros a troco dos presentes amargurados, como acontece nas políticas ordo-liberais que hoje governam o mundo. Porque é na paz e na justiça, na paz e na justiça possíveis, exequíveis, já experimentadas, que nos é devolvida a humanidade e que somos salvos do medo ancestral e animal com que nascemos e que nos corrói desde o princípio da alma até à medula dos ossos. Podemos caminhar a céu aberto, podemos falar sem receio e os nossos corpos não conhecem a fome e muito menos a pancada ou a mutilação. 

De onde vieram os comboios de Auchwitz? Quem conduzia os comboios de Auchwitz? Quem montou as peças e os parafusos dos comboios de Auchwitz? Quem foram esses que, anónimos, ataram os atacadores e depois foram empilhar os cadáveres nus dos judeus gazeados? De onde vêm as bombas que caiem sobre os civis inocentes da Síria? De quem são as mãos que as preparam, que as embalam, que as empilham? Quem são esses que por cem libras vão buscar uma menina Yesidi aos mercados, para lhes servir de escrava sexual, e que guardam o dinheiro no bolso, como qualquer um, depois de tomar o pequeno almoço? De onde vêm os homens que deitam fogo às filhas no Paquistão? E os tiranos de olhos fixos no ouro e no poder? E os chefes que condenam os povos ao fogo e à fome? De onde vem o lucro, a futilidade e a irrelevância? Essa anestesia da consciência?

Com que álcoois? Com que drogas?

Entre a civilização e a barbárie não cabe uma folha de papel celofane ao alto.




Henri Michaux, Sem Título, 1962

O casamento do filho de um milionário natural da Arménia (com uma verdadeira princesa da Disney)





O casamento do filho de um milionário natural da Arménia ficou marcado por uma cerimónia repleta de luxo e pela actuação inesperada de Adam Levine que esteve presente com a sua banda – os Maroon 5. O cantor americano terá levado um valor entre os 500 e os 800 mil dólares pela actuação, afinal, apenas uma pequena parte do que foi gasto na cerimónia que juntou grande parte das celebridades da Rússia e da Arménia e que custou cerca de dois milhões de dólares. Sargis Karapetyan, de 23 anos, e Salome Kintsurashvili, de 25 anos, casaram-se no meio de uma floresta, num famoso restaurante decorado por Gennady Samokhin e rodeados de luxo, na Rússia. Ela, excessivamente magra, de longos cabelos louros e faces um pouco cavadas, elegantíssima, recorda-nos uma princesa da Disney - a Aurora, ou a Cinderela. A extravagância do momento levou a noiva a mudar de vestido três vezes. Um dos fatos era da autoria de Elie Saab e foram usadas jóias de marcas como Tiffany Co. Sargis Karapetyan é filho de Samvel Karapetyan, dono de um grupo de empresas e considerado pela Forbes um dos homens mais ricos da Rússia. Uma das coisas que mais impressionou os convidados foi o bolo, que tinha mais de nove camadas e quase dois metros de altura!... Veja, meu querido Extraterrestre, num mundo como o nosso, nada tão importante nem tão útil como gastar dois milhões de dólares num casório!...

Ah!... A vida é breve!...




Sahar, Maha, Hala e Yawaher



Muito vos tenho falado da Arábia Saudita, este país tão rico e onde as mulheres, nem sequer as princesas ou as filhas do Rei, têm voz.

Sahar, Maha, Hala e Yawaher, as filhas do Rei Abdullah bin Abdulaziz, estão condenadas a cumprir a sentença que o pai lhes decretou, mesmo depois da sua morte.

Ao denunciar as condições em que são drogados os presos políticos nos hospitais psiquiátricos, Hala foi ela mesma drogada, raptada de casa, deixada no deserto e por fim despejada na prisão de Olaysha, para mulheres. E por serem activas em questões como os direitos das mulheres e a luta contra a pobreza, Maha e Yawaher acabaram por ser drogadas também. Em 2014, vários órgãos de comunicação social conseguiram chegar à fala com as irmãs sauditas, que acabaram por descrever a forma como estavam a morrer à fome e à sede. A ex-mulher do rei saudita, Alanoud Alfayez, que vive em Londres, chegou a enviar uma carta ao presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, a pedir ajuda para libertar as suas filhas, e, em chamada telefónica com o "New York Post", em 2015, as sauditas disseram ser agredidas por vários homens, incluindo os seus meios-irmãos que continuam a determinar o seu destino, após a morte do pai.

Estas são as princesas. Que história muda haverá para contar, em nome das outras mulheres?

Desde 2015 que não tem havido notícias de Sahar, Maha, Hala e Yawaher.



Voltar a Zipling-Zeppelin

Um pouco mais de morte ou de penumbra



Estamos em Junho de 2016. 

Uma mãe atirou-se do alto de uma ponte sobre o rio Cávado com o filho de seis anos ao cólo. Por um acaso, a mãe foi resgatada, enquanto o filho morria. Há poucos meses aconteceu o mesmo em Caxias. Uma mãe entrou nas águas geladas do rio com as duas filhas, uma ainda quase bebé e a outra de quatro anos. Ambas morriam enquanto a mãe, arrependida, saía das águas e chamava por elas.

Quantos pensamentos cabem em cinco segundos? Quantas imagens? Que arrependimento? Que medo? Poderemos sentir a separação dos corpos, o embate violento nas águas geladas, que nos entram pela boca? Poderemos algum dia pensar no intervalo de tempo entre a dor e a morte, entre a luta e a rendição?

Pensar é insuportável. Não temos mais lágrimas para chorar. Quando se chora muito, e todos o sabem, o crânio estala. É possível que se abram imperceptíveis fissuras nesses ossos lisos e é possível que se escape por aí uma parte da nossa alma ou que entre por aí um pouco mais de morte ou de penumbra. Num parque de diversões, um jacaré leva uma criança. Numa discoteca gay em Orlando, um maníaco dispara sobre trezentas pessoas. As milícias de Boko Haram matam de uma rajada vinte e quatro mulheres. Um louco esfaqueia e dispara sobre Jo Cox em plena rua. Um leão devora uma gazela. Um Tsunami arrasa uma cidade. Uma vespa morre entalada na porta. Um homicida escapa impune, depois de embrulhar uma menina num saco de lixo. Num estúpido acidente de carro, a carne dos mortos e dos feridos mistura-se com a chapa.

Nós os humanos não só vivemos num mundo em «que a vida sobrevive à custa da morte» (1), mas, mais ainda, meu querido Extraterrestre, vivemos num mundo em que deflagra um excesso gratuito de absurdo. Na verdade, um absurdo inútil, totalmente desnecessário, irrelevante. Meu querido Extraterrestre, no seu mundo todos os seres se devoram uns outros, numa cadeia de crueldade infinita? E Deus a tudo assiste sem interferir? As hienas também esperam que os leões saciem a fome, para comer os restos? E os cães e os gatos também andam abandonados pelas ruas das cidades, coxeando?

Pensar é insuportável. Dêem-nos antes duas garrafas de Vodka puro, com a mais elevada percentagem de álcool, e, se não for ilegal, dêem-nos absinto e deixem-nos desmaiar e retroceder à sensibilidade primeva de um molusco, que é melhor beber até ficar cego, amorfo e inconsciente do que viver num tal mundo, não concorda?


Polaroid de Andrei Tarkovsky no livro Instant Light: Tarkovsky Polaroids from Thames and Hudson




(1) Frederico Lourenço, post de 18/6/2016 (FB).

Uma bactéria é vida





Meu querido Extraterrestre, a quem paradoxalmente escrevo - pondere. O Director de Investigação do Centro Nacional de Investigação Científica de França, Jean-Pierre Luminet, acredita que estamos perto do momento em que iremos obter uma prova da existência de outras formas de vida no Universo. No entanto e como bem vê não espero por prova nenhuma para lhe dedicar a minha prosa arrevesada. 

"Creio que estamos muito próximo. Muito próximo pode ser alguns anos, no máximo vinte a trinta anos, para finalmente ter a certeza e a prova definitiva de que outras formas de vida existem no Universo", afirmou Jean-Pierre Luminet, em entrevista à agência noticiosa espanhola Efe.

"Com toda a probabilidade," - acrescentou o eminente Director - "serão relativamente primitivas." 

Não se ofenda, meu querido Extraterrestre!... Para o notável astrofísico francês, uma tal descoberta abrirá "um debate filosófico e científico e mudará a forma de pensar da Humanidade", e, apesar desse debate ser "muito mais importante" se a Terra receber "um sinal extraterrestre de uma civilização inteligente", Jean-Pierre Luminet ressalva que "uma bactéria é vida".

Por isso, defende que "faz falta um trabalho de explicação ao público, para que o impacto da descoberta seja suficientemente importante".

Ah!... Meu querido amigo, minha amantíssima e distante alma gémea!... Quão confinados parecemos estar no espaço que toca os nossos pés!... Observe agora que a humanidade, esta amálgama indefinível e paradoxal de bichos, santos, iluminados, assassinos, mercenários, corruptos, inocentes, inspirados, doentes, bestas, trôpegos, confundidos, observe agora que esta massa inclassificável tem «uma maneira de pensar»!... Ah!... Que falta me faz um mundo onde realmente se pense, nem que seja muito de vez em quando!... Como se pensar fosse assim uma coisa que se faz habitualmente, sem grandes riscos!... Como se pensar fosse uma actividade comunitária!... E veja como pressupomos ser do senso comum a noção de civilização inteligente!... Quem de entre nós os humanos saberá realmente o que é uma civilização inteligente?... Oh, meu querido Extraterrestre, console-se!... Sempre existe o digno estatuto das bactérias para todos os que na nossa imaginação inquestionada são inferiores a nós, já reparou?... Homo Sapiens Sapiens!... Só este título diz tudo, por isso não nos leve a mal... Um «Sapiens» apenas, aposto a «Homo», não seria já bastante despropositado?

Sabe, em Maio de 2016, a agência espacial norte-americana NASA anunciou a descoberta de mais de mil e duzentos planetas fora do Sistema Solar, dos quais nove reúnem condições para albergar vida.

Todos os homens têm um nome



Meu caro extraterrestre, não se desiluda. O mundo é mais do que as notícias que temos dele. Se está um dia de sol, as pernas doridas dóiem-nos de tanto andar à beira do mar. Pergunto-me: «Que saberá você de pernas? Que saberá você de sol?» Se está um dia de sol, o nosso corpo irradia esse suave calor, esse doce cansaço. E essa coisa pequena, essa sensação ínfima, tão suave, como não perdê-la? Se algum dia um escritor souber parar o fluxo infinito que o atravessa, deter absolutamente o tempo, vencer o esquecimento e segurar ao alto toda a alegria de existir e que se esvai no limbo, nesse dia celebraremos. Porque, se estiver sol, os nossos dias cintilam absurdamente. Os aviões voam muito alto e talvez seja possível ver um deles, minúsculo, no céu muito límpido. Ínfimos, ínfimos pontos, quase invisíveis, são os caracóis que trepam por uma parede. Temos por hábito cortar o mato na margem das linhas férreas. E é comum, à beira das praias, haver pegadas no chão de cimento ou asfalto. Pés nus, porque se vêem as marcas dos dedos no chão. Alguém que saiu da água e não se importou de seguir descalço, indiferente à urina dos cães.

África



África é uma das grandes feridas do mundo, aberta pela expansão marítima portuguesa que foi (e é) o orgulho dos tolos e por todos os crimes da Europa subsequentes. Portugal e a sua elite viveram séculos à sombra de roubos e do comércio de escravos e, na esteira de Portugal, muitas outras nações europeias. Mas mesmo depois das descolonizações e declarações de independência, para os povos violados e abusados e para as gerações de homens, mulheres e crianças que suportaram andar com grilhetas nos pés e correntes ao pescoço o martírio da violência continua a reproduzir-se, como uma má e absurda semente.

Na Eritreia, um pequeno país africano à beira do Mar Vermelho que foi colonizado pela Itália entre 1869 e 1941, trinta anos de guerra com a Etiópia deixaram minadas e intransitáveis as terras mais férteis do país. E embora mais de um milhão e meio de pessoas, entre cinco milhões, dependam de ajuda humanitária para comer, a miséria geral não impediu o país de angariar recursos para prover de armas as milícias islâmicas que em 2006 combatiam o frágil governo interino da Somália, seu aliado exangue.

Será que a violência só conhece um único filho - a violência? Imagine um desabamento infinito, meu caro extraterrestre. A violência parece que se reproduz como uma queda de terras num desabamento infinito. Como um grito que gera outro grito e outro e outro e mais outro - de uma alucinada linhagem de herdeiros mutilados - onde haverá fim? 

Apesar de possuir vastos recursos agrícolas, grandes reservas de ouro e urânio, diamantes, café, madeiras e tabaco, a República Centro-Africana é outro dos países mais pobres do mundo. Vampirizado durante sessenta e seis anos pela colonização francesa, este país sem mar e onde se falam mais de oitenta línguas não parou de sofrer os abusos e as atrocidades dos sucessivos tiranos e chefes corruptos que chegam ao poder. Bokassa, David Dacko, André Kolingba, Patassé, Bozizé, todos eles, sem excepção, foram sangrando o povo que se multiplica absurdamente e que morre de fome, forçado a abandonar as terras onde não existe paz.

No Corno de África, a Somália é famosa pela miséria, corrupção e pirataria. Os Dervixes repeliram por quatro vezes com sucesso as investidas do Império Britânico e só em 1920 foram derrotados pelas bombas dos aviões ingleses, tendo sido então transformados num protectorado da Grã-Bretanha, que durou quarenta anos. Num país que vive em guerra civil intermitente desde 1991, sem governo central e sob o jugo dos «senhores da guerra», os homens, as mulheres e as crianças morrem aos milhares. Desde 1991 que os piratas são  uma séria ameaça à navegação, sequestrando navios, petroleiros e toda a tripulação em troco de resgate e impedindo a entrega de mantimentos às populações famintas por mar, num país em que setenta e cinco por cento das crianças estão subnutridas e mais de trinta e cinco por cento morrem antes dos cinco anos.

O Zimbabwe, apesar dos solos férteis e das grandes reservas de ouro, amianto, crómio e carvão, é o país mais pobre do mundo. Colonizado desde o final do século XIX pelos ingleses, a sua independência só foi reconhecida em 1980, depois de um conflito sangrento que durou mais de uma década. Mugabe, que lidera o país desde 1980, tem hoje noventa e dois anos e é directamente responsável pela asfixia do país e do seu povo. Apesar da sua idade, cada vez são mais duras as medidas de autoritarismo, força e crueldade. Quem é que o destrói? Mesmo no limite da extrema miséria e fome do povo o presidente cobiçoso, de olho fixo nos diamantes, ainda conseguiu enviar tropas para combater na terrível guerra civil da República Democrática do Congo, seu aliado estripado, desfeito, sangrado, e onde até as meninas de um e dois anos são violadas, quando tomadas pelas tropas inimigas. Mugabe e a sua mulher, Grace Mugabe, assim como mais cinquenta e um membros do governo, são alvo de sanções por parte dos Estados Unidos e Europa e estão impedidos de viajar nestes dois pontos do mundo. Mas a família Mugabe, riquíssima, habita um palácio que custou vinte e seis milhões de dólares, no país mais pobre do mundo!...

E falta-nos falar do Chade, do Burundi, da Libéria, de Guiné-Bissau...

Que fazemos para entrar nas casas onde em segredo as crianças são batidas pelas mães ou violadas por um primo, por um tio, por um pai? Que fazemos por quem nasce na toca do lobo? Cada um trata de si. Do alto do nosso conforto sabemos que ao longe há quem lute descalço pelo acesso a uma bica de água, quem trabalhe de sol a sol por uma malga de sopa, quem fuja sem sapatos e nada nas mãos para se salvar de uma morte certa debaixo de fogo. Que fazemos? Sangram os países e os homens do mundo, às mãos dos violentos e dos ambiciosos e nós, os confortáveis, que fazemos?

Não chega metade do mundo para pegar ao cólo a outra metade?

As baleias morrem quando dão à costa.


Criança da cidade de Mogadíscio, na Somália, durante a guerra civil.

A meritocracia


Se por um lado no Burundi, um dos dez países mais pobres do mundo, a elite tutsi vampiriza a maioria hutu, deixando o país numa miséria exangue; no outro lado do globo pavoneia-se um candidato republicano, o famoso Donald Trump, que compra um avião a jacto de cem milhões de dólares com uma torneira banhada a ouro de vinte e quatro quilates.

Enquanto nos Estados Unidos o cantor Justin Bieber gasta seiscentos e cinquenta e oito euros em cada corte de cabelo que faz, por não saber onde gastar tanto dinheiro que ganha, do outro lado do oceano acontece que mais de metade da população da Serra Leoa (um país riquíssimo em ouro e diamantes) vive sem água potável e com menos de um dólar por dia.

Tudo acontece ao mesmo tempo, no mesmo mundo!

No Niger, a população esfomeada e sem escolaridade continua a multiplicar-se desenfreadamente, apesar da fome e da terra escassa, devorada pelo grande deserto. Mas em Inglaterra a Princesa Kate compra um carrinho de mil libras para o seu bebé, afinal apenas mais um dos múltiplos e luxuosos acessórios, entre roupas, jóias, relógios, casas, carros e propriedades, com que a magnânima e digníssima família real se adorna.

Veja, este é o nosso mundo! 

Trata-se para alguns do resultado um pouco descontrolado de uma lógica muito defensável e a que chamam meritocracia.

Por isso, a quem me hei-de dirigir, mesmo repudiado, senão a si, meu caro extraterrestre?

Se houver um frango para vinte seres humanos mais vale que um deles o devore todo inteiro e se alimente depois da carne dos restantes dezanove cadáveres, não concorda?

Do alto do infinito - a indiferença nos contempla



Vê-se pelas imagens-satélite que este planeta tem um limite no espaço e sabe-se pelos resultados da investigação científica actual que teve um começo no tempo. Este planeta, ou seja, o nosso planeta. Mas quando pensamos no tempo anterior ao nascimento da estrela mais próxima ou ao nascimento das espirais das galáxias que nos olham com o brilho das suas poeiras giratórias do alto dos céus, quando pensamos nesse momento singular e anterior a tudo o que sabemos que existe e que um dia terá começado a existir, tudo o que pensamos é: «E antes? E depois? E onde? E para onde?»

Não há maneira de escapar ao infinito, nem mesmo depois de ler a Crítica da Razão Pura, de Kant. É verdade que um homem liberto de todo o interesse e indiferente a todas as consequências estará condenado a oscilar de um modo perpétuo entre as ideias antagónicas das quatro grandes antinomias da Razão Pura, segundo Kant. O espaço é finito, ou infinito? A matéria pode dividir-se infinitamente, ou decompõe-se apenas em elementos simples e indivisíveis? O mundo tem uma causa, um agente criador, ou não existe nenhum Deus? Seremos livres, ou fruto de meras condições? Porém, não é de todo verdade que, do ponto de vista da acção, este jogo meramente especulativo da razão desapareça como «fantasmas de um sonho» e se imponham os princípios do interesse prático (que aliás de um modo muito mais frequente é contaminado por toda a ordem de patologias). Do alto do infinito, a indiferença nos contempla. Que diferença fará no meio do infinito a ínfima migalha da nossa existência? Que diferença poderão fazer no imenso areal do universo o grão invisível do santo ou do assassino, o pó da vida ou da morte, a poeira da dor, ou da alegria?

Na alma de tantos os que encalham neste primeiro cabo do pensamento talvez reste o desejo, mas o desejo que resta é como as baratas que correm às cegas nos soalhos das casas abandonadas.

É um desejo mecânico que anda como andam as pernas de um animal a quem tenham cortado a cabeça - numa última alucinação.

A Resposta do Humano


Meu caro e inesperado Extraterrestre,

Num planeta tão insuportável e tão inóspito, é verdade, dei por mim a imaginar que você seria, afinal, o meu único leitor, o único, entre todos os impossíveis, leitor possível. Mas quem diria, quando afinal este livro é sobre o facto de não sermos contactados por extraterrestres, quem diria afinal que eu iria ter a honra inaudita de ser contactado por si? Será que este livro vai terminar agora mesmo, neste preciso momento? Luzes! Música de suspense! Parangonas! Tambores! Tchá Tchá Tchá!

Como vê, o paradoxo pelo qual me condena não é o único em que incorro. Há muitos, e esse nem sequer é o mais grave, o mais insuportável, o mais insustentável, enfim. Como é que mantenho o título, depois da sua carta? E como é que posso abdicar, quer da sua carta, quer do meu título? Console-se com isto, meu querido amigo, inteligentíssimo e imponente Extraterrestre, ainda que escandalizado e destroçado: sendo você o Extraterrestre, e eu o Humano, como haveríamos de nos entender, de facto?

O que o choca tão profundamente ao ponto de me abandonar de uma vez por todas não é que eu pertença a uma raça tão infame e tão feroz, a auto-denominada humanidade, cuja bondade, como tão bem sublinha, é sempre claudicante, nem são os crimes, nem a brutalidade, nem a avareza que lhe descrevo e nem sequer a minha ingenuidade ou a minha pervasiva incoerência. Nada disso. O que o choca de um modo irreversível e tremendo é que eu reconheça numa multidão tão criminosa e tão frouxa uma «capacidade para sonhar de um modo comunitário», para citar as suas brilhantes e inspiradas palavras.

Você que escreve português como um verdadeiro nativo, é curioso, você não sabe de uma coisa extraordinária mas real, absolutamente real, entre nós, os humanos, que é esta capacidade para sonhar de um modo comunitário. Porque o ladrão nunca quer ser roubado; o assassino não quer ser morto e, mesmo quando se auto-flagela ou suicida é porque no Além sonha com a vida eterna, que de alma e coração persegue. O carrasco jamais se submeterá às próprias torturas; nem o violador se oferecerá para ser violado. Quando o homem ordena à mulher que se cubra com um véu, ele mesmo não se cobre com nenhum véu, e anda de rosto destapado; e o soldado que dispara a sua arma sonha sobreviver incólume e poder regressar a casa, depois da guerra. Quem bate não deseja ser batido; e o rico que conta os tostões e que explora o trabalho dos pobres ou regateia o valor dos seus empregados, esse não se deixa explorar de forma de alguma, e faz-se pagar pelos valores mais elevados. Aquele que mata em nome da religião não ambiciona ser condenado por causa da sua; e se o tirano jamais deseja vergar-se a uma tirania exterior e alheia, o cobarde também deseja que um corajoso o defenda, ou que pelo menos não sejam todos os outros tão cobardes como ele. Até um reles mentiroso, mal ou bem, conta com a verdade das palavras dos outros, mais não seja, de vez em quando!...

Foi Kant quem resumiu de forma notável este aspecto da nossa condição humana, com a seguinte máxima: «Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal.» E não, meu caro extraterrestre, não é paradoxal que eu fale de um mesmo e semelhante mosaico de sonhos, a propósito da nossa tosca humanidade. Sabe quem lhes deu uma das formas mais acabadas, a estes sonhos em comum? Foi depois do flagelo da Segunda Guerra Mundial, que matou mais sessenta e seis milhões de pessoas em todo o mundo, que a recém-criada Organização das Nações Unidas assinou a carta de 20 de Junho de 1945 em que os povos exprimiam a sua determinação «em preservar as gerações futuras do flagelo da guerra; proclamar a fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e valor da pessoa humana, na igualdade de direitos entre homens e mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas; em promover o progresso social e instaurar melhores condições de vida numa maior liberdade.» E foi em 10 de Dezembro de 1948 que a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que foi esboçada pelo canadense Jonh Peters Humphrey e na qual participaram muitas outras pessoas.

Não passou um século, e por todo o lado o mundo sangra. Os homens continuam a matar em nome de Deus, a explorar e a condenar o semelhante na mira do ouro ou de um mero e vão prestígio. É lamentável, mas esta declaração não tem a força da lei. Em muitos, muitos lugares, estes «direitos»... não passam de meras palavras.

Porque é que a sua letra não está inscrita em todos os corações e em todas as mãos, como uma evidência natural, ou como um sopro da natureza?

Talvez porque do infinito, e acima de tudo, nos sopra a indiferença?

A Carta do Extraterrestre

 


 
«Meu caríssimo e honrado escritor,
 
Neste momento é caso para dizer, à boa maneira popular e humana:

"ALTO E PÁRA O BAILE."
 
Chega. Não há paciência para que alcancemos, com uma prosa oitocentista e barroca, o limite de uma tal incoerência.
 
Você tem contado até agora com a minha alma impoluta e supra-terrena para o acompanhar nas suas digressões que são um misto de inocência, intervencionismo, ingenuidade e rudimentar moralismo. E eu, confesso, de boa-vontade o tenho seguido, ainda que não saiba porquê. Você tem contado com a minha inteligência alienígena e mil vezes avançada em relação à sua para sorrir com alguma complacência da sua dificuldade em imaginar o conteúdo de números superiores a um milhão. Tem contado com a minha paciência, com o meu interesse, com a minha dedicação e até com a minha sonolência. Tem contado, e nunca é demais sublinhá-lo, nunca, nunca, mas nunca é demais sublinhá-lo, com o meu humor absolutamente extraterrestre para conseguir encontrar-lhe, a si, um escritor que nem sequer sabe como escrever para os seus parentes humanos, alguma graça. E mais. Tem até contado com uma inteligência supra-nominal e supra-transcendental para poder ler e escrever numa das inúmeras e obscuras línguas do seu babélico planeta, o português. Não tenho desejo de o conhecer, é certo, nem a si, nem aos seus sanguinários conterrâneos. Seria até perigoso para a minha pele extra-terrena mais suave e delicada que qualquer coisa que vocês, os humanos, possam imaginar, e quase transparente, enveredar por uma tal aventura incauta. Mas, francamente, é demais que agora se ponha a falar de «um mesmo e comum mosaico de sonhos», a propósito dos sete mil milhões de habitantes que se reproduzem num tão nefasto e insuportável planeta. É agora que esta infame raça de humanos começa a sonhar de forma comunitária? Já basta de paradoxos que são simplesmente inúteis pela sua grosseria e vulgaridade. Basta. Dou-me ao trabalho de lhe escrever numa língua que para si seria ainda mais difícil que o mandarim só para lhe explicar que um paradoxo, a ser utilizado, é com o mais sagrado respeito e para obrigar o pensamento a dar um salto. E você sabe o que isso é? - Não sabe. Nem sequer existe na sua língua um conceito equivalente para o que eu aqui sou forçado a traduzir grosseiramente por «sagrado respeito». Pode parecer-lhe que o meu discurso é arrogante, mas eu estou profundamente escandalizado, estou profunda e completamente escandalizado, de um modo que me tira as forças e que me deixa desfeito, arruinado, debilitado... E mais. Vocês também não têm conceito para esta tradução de novo grosseira, rude, repelente, imprópria e débil - «Escandalizado»!... Ah!... São de uma miopia insuportável!... Vêem tudo desfocado!...

Sagrado respeito... É qualquer coisa que não vacila nem se distorce quando passa da intenção para a acção. É inabalável. Não treme. Não claudica, como toda a vossa bondade. O que eu sou forçado a traduzir por sagrado tem uma tal força que não cede às mudanças de ideias, não se questiona, e é imune a qualquer forma de destruição. E você, que eu já fintei, sofre precisamente dessa doença que o obriga a começar muitas vezes de novo, muitas vezes, muitas vezes, até que quando por fim exausto por uma tal travessia e velho de todo o tempo que gastou a empreendê-la você venha a tombar na praia da sua mortal debilidade, às portas de uma individual e mais que certa finitude. Não posso, não posso admitir que você use um paradoxo desta forma. Sabe o que é obrigar o pensamento a dar um salto? Mudá-lo para um plano que não tenha nada, mas nada, a ver com o seu? Não basta usar o aparelho crítico, destruir ilusões, ideias feitas, lugares-comuns e outras comodidades. Essa parte é fácil, comparada com o resto... Perder tudo é fácil, comparado com o resto... Içar-se a uma outra luz... É essa a única função que permite tolerar o paradoxo, que não é para usar assim, de um modo leviano. Se insiste em falar de loucos, de assassinos, de ladrões, de déspotas, de tiranos, de cobardes, de cobiçosos e de invejosos e de fúteis que trocam a sua alma e a dos filhos pelo púrpura de um tapete miserável ou pelo brilho de uma reles túnica que apenas servirá para cobrir os seus esqueletos quando forem enterrados, não venha falar-me de um «mosaico de sonhos em comum», quando insiste em descrever uma tal multidão de bestas.

Lamento, mas, de uma vez por todas, terei de abandoná-lo.

 
 
Assina quem já foi seu,
 
um destroçado Extraterrestre.»

Eis 2015



Eis 2015, o ano em que ainda decorrem as nossas vidas, a minha, a sua e a de mais sete mil milhões de pessoas. Concordará que é difícil imaginar um tal número, por um lado, mas que é fácil, por outro, imaginar o aspecto comum das franjas numerosas de um tal povo humano, com as suas crianças, bebés, rapazes e raparigas, homens e mulheres, velhos, e, por todo o lado, um semelhante mosaico de sonhos.

Nunca desde a Segunda Guerra Mundial se testemunhou um tão grande número de pessoas deslocadas e em busca de refúgio, e é por isso que queremos falar de 2015. São sessenta milhões de pessoas. Em tendas, caminhando a pé, com crianças ao colo, arriscando a vida em viagens perigosas, sem nada nas mãos. Por isso queremos falar desta humanidade de agora mesmo - e de como o mundo sangra, mudo, esburacado, indiferente, curvado e torturado.

Você poderá ter a sorte de escrever livremente num blogue, sem que venham bater à sua porta e sem que registem o seu nome numa lista negra, mas neste mundo de cento e noventa e três países, foram cento e treze países os que limitaram ou restringiram arbitrariamente a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa. Mais de metade, portanto. Destes, sessenta e um países colocaram na prisão pessoas que apenas exerceram os seus direitos e liberdades.

Você poderá viver com a paz nem sequer consciente de não ter medo que caia uma bomba em cima da sua casa, sem o trauma de uma guerra perante a qual fosse impotente, sem o terror de ficar vivo mas sem uma parte da sua alma ou do seu corpo, e sem a experiência terrível do medo que, uma vez sentido, infiltra como um poderoso veneno o futuro todo inteiro, e fura a medula dos ossos,  e penetra até no último reduto do sono, mas mais de trinta países forçaram ilegalmente refugiados a regressar aos países onde corriam perigo.

Foi em 2015, agora mesmo. Diferentes grupos armados cometeram abusos de direitos humanos em pelo menos trinta e seis países. Crimes de guerra e outras violações das "leis de guerra" foram cometidas e ficaram impunes em pelo menos dezanove países. Cento e vinte e dois ou mais países torturaram ou cometeram outros maus tratos sobre pessoas e pelo menos cento e cinquenta e seis defensores de direitos humanos morreram em detenção ou foram mortos.

Parecem apenas números, mas todos eles reportam uma história, uma vida, uma alma, um corpo, um feixe desgarrado de sonhos por cumprir, e não só os que numeram, mas todas os outros que nem chegaram ao estado da denúncia.

Não há nada tão absurdo e grotesco como o sofrimento que a humanidade inflige a si própria. E sim, os direitos humanos, mais que nunca, estão em risco. Foi por esta mesma ordem de razões que Espinoza, em 1665, teve de interromper a escrita da «Ética» para empreender a redacção do «Tratado teológico-político». «Porque é que os povos são tão profundamente irracionais? Porque é que honram a sua própria escravatura? Porque é que os homens se batem pela sua escravatura como se fosse a sua liberdade? E porque é que é tão difícil não só conquistar mas suportar a liberdade? Sim, porque é que uma religião que se reclama do amor e da alegria inspira a guerra, a intolerância, a malevolência, o ódio, a tristeza e os remorsos?» (1)

As perguntas de hoje são as mesmas, e sem resposta.







(1) Gilles Deleuze, «Spinoza - Philosophie Pratique», p.17.