As belas verdades que por vezes saem da boca dos amigos

"Para nós, simples terrenos que não temos conexões com o outro mundo, é difícil especular sobre o futuro."



poema diminutivo: o grito

 


Já foi tempo em que o grito

era arma de guerra - e gelava de medo

o corpo do combate inimigo.

O mundo dos homens, das mulheres, 

das crianças e dos animais aflitos.

O mundo dos desamparados da sorte.

O mundo da dor infinita sem consolo.

O mundo da ambição e da indiferença.

O mundo para quem a trégua é só cansaço,

sono, álcool, morte.

Onde a paz foi trocada por coisas,

a alegria por enfeites, 

os valores por notas de dinheiro,

a dignidade por prestígio.

Para este mundo, onde está o grito?

Onde está a arma de guerra

com que rasgo a minha carne

como se fosse a roupa que não quero envergar?

O grito que me salve da vergonha

de compactuar nos crimes com a impotência,

de ser cúmplice por inacção.

A arma, onde está, 

para fazer frente à ignomínia?

Cada um quer simplesmente

viver uma boa vida, uma vida boa,

cada um à sua maneira.

Aqui e ali, caem mísseis sobre casas algures.

Aqui e ali, a miséria grassa ao ponto da fome.

Aqui e ali, há quem esteja no lugar errado.

Aqui e ali, há quem trabalhe todos os dias

sem ganhar tecto nem pão.

E eu, que também gostaria de viver uma boa vida,

depois de ter pensado muito sobre isso,

e pensado até que a boa vida

só pode ser vivida para deus

e sem qualquer espécie de exigência,

eu por mim gostaria apenas

de fazer greve desta existência,

uma greve conjunta, revolucionária,

uma greve de milhões que fizesse tremer tudo

de uma ponta à outra dos oceanos

e que com ela mudássemos o mundo,

mas tenho vários problemas:

quanto às ideias teóricas

que tenho sobre o valor do trabalho 

a tirania selvática dos mercados

a possível transmigração das almas

e até deus

elas soam tão estranhas que parecem delírios,

ninguém as ouve,

e quanto às ideias práticas,

parece-me que não terei nenhuma.