Nem o futuro é previsível, nem o presente é garantido




 
Meu caro Extraterrestre, eis um aspecto curioso da nossa vida quotidiana.
 
Não é frequente ocorrer-nos que encontrar iogurtes no corredor dos produtos refrigerados, no supermercado, seja uma coisa que pode não ser possível amanhã.
 
Nos nossos supermercados, é possível encontrar uma gama de iogurtes absolutamente espantosa. Magros, gordos, gregos, naturais, biológicos, medicinais, com frutas, com cereais, com chocolate, com smarties, com doce, de leite, de soja, de amêndoa...
 
Parece que a abundância de todo o globo se encontra ao alcance de um carrinho de mão.
 
Bacalhau da noruega, camarões tigre de Angola, manga do Brasil, ananás dos Açores, líchias da China, mostarda de Inglaterra, Ketchup da Alemanha, arroz dos Himalaias...
 
A lista é infindável.
 
Você não pode imaginar quantas marcas de papel higiénico existem à nossa disposição, num supermercado.
 
Folha dupla, folha tripla, folha simples, acolchoado, macio, perfumado, colorido, florido, reciclado...
 
Entrar num grande supermercado é uma experiência estranha, difícil, fascinante e avassaladora. Pode dar-nos uma sensação de irrealidade, de claustrofobia, de sufoco.
 
As maçãs são enceradas, para terem mais brilho.
 
Está tudo lavado, brilhante, embalado, colorido.
 
Por todo o lado há etiquetas, rótulos, preços, tabuletas, cores faiscantes, promoções, lâmpadas e instruções.
 
Não é frequente ocorrer-nos que os supermercados não estejam lá, iguais a si mesmos, no dia seguinte, como não é frequente ocorrer-nos que não haja água quente nas torneiras da nossa casa, luz nas lâmpadas e electricidade nas máquinas, como internet no computador, e telefones nas malas.
 
Os nossos carros andam - e há estradas por todo o lado.
 
Temos roupa lavada e passada a ferro, todos os dias.

No entanto, como você naturalmente deve saber, meu caro Extraterrestre, na segunda metade do século XIX, Karl Marx observou, de uma forma bastante admirável, n' O Capital, que «a tendência imanente da produção capitalista consiste em apropriar-se do trabalho durante as vinte e quatro horas do dia». (1)
 
Talvez não nos ocorra que os resultados notáveis desta tendência de crescimento e de apropriação total se encontram, tanto nas nossas casas, como nos modernos supermercados.
 
Que há de mais maravilhoso e confortável que uma casa moderna, com as suas máquinas, as suas luzes, fontes de calor e de água e todas as comodidades que couberam algum dia na imaginação dos homens?

Quereremos algum dia voltar a viver de livre vontade numa cabana, em condições realmente idênticas às da Idade Média, sem água, sem luz e sem telefone?
 
No século XIX e ainda hoje, embora não em todo o globo, mas apenas naqueles locais em que a miséria é tão grande que os homens se sujeitam a qualquer trabalho a troco de um pouco de pão (locais que não são assim tão pequenos, nem tão pouco povoados, nem tão rarefeitos como o brilho de uma estrela distante), a apropriação do dia de trabalho pelas grandes empresas e multinacionais, que hoje «deslocalizam» as suas fábricas (ou melhor, transferem-se para esses paraísos do trabalho barato), com vista ao aumento da mais-valia e do lucro, continua a fazer singrar e a expandir, de um modo maravilhoso e verdadeiramente digno de admiração, este nosso mundo da super-abundância.
 
Claro que nós temos muita dificuldade em pensar nos pilares que sustentam a nossa abundância, meu querido Extraterrestre, pois, como decerto se vai apercebendo, o pensamento humano sofre de limitações extremas, que são comuns a todos nós, e dificilmente se separa do estômago, que é um dos órgãos mais exigentes e tirânicos do nosso corpo.

Será que você também tem um estômago, ou será que em si as forças criativas do universo se realizaram de tal modo que não o obrigam a delapidar, pelo desejo, pela necessidade, pela cobiça, ou pela fome, as outras obras de Deus?

Parece que é uma proeza ser capaz de pensar com o estômago realmente vazio e, uma vez de barriga cheia, também se torna difícil reflectir em certos assuntos.
 
Marx cita Naylor e Vickers, os fabricantes de aço da empresa que foi fundada em 1828 e que mais tarde veio a produzir armamento, equipamento militar aeronáutico e automóveis, tendo comprado em 1980 o fabricante de motores da Rolls Royce que, por sua vez, em 1998 (há menos de vinte anos), foi vendido à Volkswagen. Nesses tempos remotos e hoje quase esquecidos, diziam os dois distintos empresários:
 
«Os rapazes nada sofrem com o calor. A temperatura é de trinta a trinta e dois graus centígrados. Na forja e no laminador os braços trabalham dia e noite, revezando-se, mas toda a obra faz-se de dia, das seis da manhã às seis da tarde. Alguns operários trabalham continuamente de noite sem se revezarem, isto é, nunca de dia. Não nos parece que o trabalho, quer se execute de dia, quer de noite, faça a mínima diferença à saúde e as pessoas dormem melhor quando gozam do mesmo período de repouso do que quando este período varia. Cerca de vinte crianças trabalham de noite com os homens. Não poderíamos sair-nos bem sem o trabalho nocturno de rapazes abaixo dos dezoito anos. Haveria um grande aumento nos gastos de produção. É difícil ter contramestres hábeis e «braços» inteligentes; mas rapazes arranjam-se tantos quantos se queiram.» (1)

Claro que Karl Marx, no século XIX, não imagina ainda o destino particular que teria a empresa Naylor and Vickers, no século XXI, quase duzentos anos depois da sua fundação.

Mas seria a coisa mais interessante e produtiva, para cada empresa citada n' O Capital, investigar o seu destino posterior, a linhagem que produziu e, a partir dessa descrição, produzir uma imagem da nossa história global.

Citando a Comissão Parlamentar sobre a Falsificação das Subsistências (1855-1856) e o relatório do Dr. Hassall, intitulado «Adulterações Descobertas», Marx comenta:

«O inglês, sempre a cavalo na sua Bíblia, sabia muito bem que o homem é destinado a comer o pão com o suor do seu rosto, desde que a graça divina não tenha feito dele um capitalista, um grande proprietário, ou um tachista; mas ignorava que estivesse condenado a comer no pão "uma certa quantidade de suor humano diluído em teias de aranha, cadáveres de baratas, fermento apodrecido, resíduos de úlceras purulentas, sem falar do alúmen, da areia e de outros ingredientes minerais de idêntico sabor."» (2)

E continua:

«Os padeiros full priced (que vendem o pão ao preço normal) trabalham das onze da noite às oito da manhã do dia imediato, quase sem interrupção; empregam-se depois a transportar o pão até às quatro, cinco, seis e sete horas e, algumas vezes, a fazer biscoitos na padaria. Terminada a sua tarefa, permitem-lhes dormir quase seis horas; muitas vezes dormem apenas cinco ou quatro horas. Às sextas-feiras, o trabalho começa sempre mais cedo, em geral às dez da noite, e continua sem parar até às oito do dia seguinte. Nas padarias de primeira classe, em que o pão se vende ao preço normal, mesmo nos Domingos, há quatro ou cinco horas de trabalho preparatório para o dia seguinte. Os padeiros que vendem o pão abaixo do preço normal - e estes formam, como já observámos, mais de três quartos dos padeiros de Londres - são sujeitos a mais longas horas de trabalho; mas o seu trabalho executa-se quase por completo na padaria, porque os patrões, exceptuando algumas entregas aos comerciantes retalhistas, só vendem nas suas próprias lojas. Às sextas-feiras, o trabalho começa nestas padarias às dez da noite e prolonga-se até à meia-noite de Domingo ou ainda mais. Quanto aos fabricantes de pão que vendem abaixo do preço normal, reconhecem que é o trabalho "não pago" dos operários (the unpaid labour of the men) que lhes permite fazer concorrência. E o padeiro de "preço normal" acusa os concorrentes de "preço abaixo do normal", perante a Comissão de Investigação, como se fossem ladrões de trabalho alheio e falsificadores: - "Só têm êxito porque enganam o público e obtêm dos seus operários o trabalho de dezoito horas pelo preço de doze."» (3)
 
Meu querido Extraterrestre, meu compreensivo e paciente amigo, a quem apesar de tudo me posso dirigir e a quem posso escrever, mesmo depois das nossas elegantes e cordiais cartas de zanga e ruptura, é claro que tudo isto se passou no século XIX, não no século XXI.

Agora, precisamente neste luminoso segundo, meu inestimável amigo, meu inteligente e delicado Extraterrestre, porventura e desejavelmente desprovido de estômago, agora estamos no inaudito, glorioso, complexo e progressista século XXI.
 
Ora, neste nosso presente amiúde conturbado, quando se vem a saber, preto no branco, por exemplo, que a Apple, perto de Xangai, na Pegatron, produz os I-Phone 6 em condições de trabalho que em tudo se assemelham às dos padeiros ingleses do século XIX a preço normal (4), ou que, na Turquia, a indústria têxtil emprega crianças órfãs refugiadas em condições que pouco diferem das dos rapazitos que trabalhavam para Naylor e Vickers em 1830 (5), tudo isto, de certa forma, é totalmente diferente, quiçá por causa da redacção da Carta dos Direitos Humanos, quiçá por causa da invenção da bomba nuclear, do relógio digital, do computador pessoal, do ecrã táctil ou do sufrágio universal.

Do mesmo modo que, aqui e ali, um sobrevivente de guerra, por não ter morrido, se pode sentir exaurido e estrangulado pela culpa, diante da morte dos seus familiares e amigos, assim também alguns dos que escapam à miséria, os privilegiados da abundância, em vez de felizes, podem sentir-se irremediavelmente culpados e responsáveis diante da miséria dos seus semelhantes e do lixo que diariamente produzem, em sacos limpos e que se vendem em rolos, para colocar nos contentores.

«Trabalhar até à morte, eis a ordem do dia, não só nas oficinas das modistas mas em toda e qualquer oficina. Vamos ver por exemplo um ferreiro. A dar crédito aos poetas, não há homens mais robustos, mais transbordantes de vida e de alegria do que os ferreiros. Levantam-se de manhã cedo, produzem faíscas na forja antes do nascer do sol. Comem, bebem e dormem como ninguém. Sob o ponto de vista físico, é verdade que, se o trabalho for moderado, encontramo-nos perante uma das melhores condições humanas. Mas sigamos um ferreiro à cidade e examinemos o peso de trabalho posto sobre este homem forte e que nível ocupa na lista de mortalidade do nosso país. Em Marylebone (um dos maiores bairros de Londres) os ferreiros morrem na proporção de trinta e um em mil, todos os anos, número que excede em onze a média da mortalidade dos adultos em Inglaterra. Esta ocupação, uma arte quase instintiva da humanidade, torna-se, pelo simples excesso de trabalho, destruidora do homem. Um ferreiro pode dar em cada dia muitas marteladas, muitos passos, muitas inspirações, executar muito trabalho, e viver apenas cinquenta anos. Se o forçarem a dar tantas marteladas a mais, a dar muitos mais passos por dia, a respirar mais tantas vezes acima da média, somando todos estes excessos ao dispêndio normal de energia, sabem qual será o resultado? Morrerá aos trinta e sete em vez de morrer aos cinquenta.» (6)

Meu querido Extraterrestre, você sabia que as raparigas também jogavam à bola em bikini, na Sicília, no século III depois de Cristo, isto é, há mil e setecentos anos atrás?

Depois, no século XX, muito depois de as mulheres terem sido proibidas de mostrar os tornozelos ou de tomarem banho sem uma camisa bem comprida por cima, até aos pés, porque olharem para o seu próprio corpo poderia resultar em pecado mortal, inventou-se o bikini.





 
 





(1) MARX, Karl, «Capítulo X - O dia de trabalho: IV - Trabalho de dia e de noite. Sistema de turnos» in O Capital, Vol. I (Lisboa: Delfos, 1973, versão integral traduzida por António Dias Gomes), p. 163.

(2) Id., «Capítulo X - III - O dia de trabalho nos ramos industriais ingleses em que a exploração não é limitada por lei», p. 157.

(3) Id., p. 158.

(4) http://www.bbc.com/news/business-30532463

(5) http://www.bbc.com/news/business-30532463

(6) Id., «Capítulo X - III - O dia de trabalho nos ramos industriais ingleses em que a exploração não é limitada por lei», p. 161.