Do alto do infinito - a indiferença nos contempla



Vê-se pelas imagens-satélite que este planeta tem um limite no espaço e sabe-se pelos resultados da investigação científica actual que teve um começo no tempo. Este planeta, ou seja, o nosso planeta. Mas quando pensamos no tempo anterior ao nascimento da estrela mais próxima ou ao nascimento das espirais das galáxias que nos olham com o brilho das suas poeiras giratórias do alto dos céus, quando pensamos nesse momento singular e anterior a tudo o que sabemos que existe e que um dia terá começado a existir, tudo o que pensamos é: «E antes? E depois? E onde? E para onde?»

Não há maneira de escapar ao infinito, nem mesmo depois de ler a Crítica da Razão Pura, de Kant. É verdade que um homem liberto de todo o interesse e indiferente a todas as consequências estará condenado a oscilar de um modo perpétuo entre as ideias antagónicas das quatro grandes antinomias da Razão Pura, segundo Kant. O espaço é finito, ou infinito? A matéria pode dividir-se infinitamente, ou decompõe-se apenas em elementos simples e indivisíveis? O mundo tem uma causa, um agente criador, ou não existe nenhum Deus? Seremos livres, ou fruto de meras condições? Porém, não é de todo verdade que, do ponto de vista da acção, este jogo meramente especulativo da razão desapareça como «fantasmas de um sonho» e se imponham os princípios do interesse prático (que aliás de um modo muito mais frequente é contaminado por toda a ordem de patologias). Do alto do infinito, a indiferença nos contempla. Que diferença fará no meio do infinito a ínfima migalha da nossa existência? Que diferença poderão fazer no imenso areal do universo o grão invisível do santo ou do assassino, o pó da vida ou da morte, a poeira da dor, ou da alegria?

Na alma de tantos os que encalham neste primeiro cabo do pensamento talvez reste o desejo, mas o desejo que resta é como as baratas que correm às cegas nos soalhos das casas abandonadas.

É um desejo mecânico que anda como andam as pernas de um animal a quem tenham cortado a cabeça - numa última alucinação.

A Resposta do Humano


Meu caro e inesperado Extraterrestre,

Num planeta tão insuportável e tão inóspito, é verdade, dei por mim a imaginar que você seria, afinal, o meu único leitor, o único, entre todos os impossíveis, leitor possível. Mas quem diria, quando afinal este livro é sobre o facto de não sermos contactados por extraterrestres, quem diria afinal que eu iria ter a honra inaudita de ser contactado por si? Será que este livro vai terminar agora mesmo, neste preciso momento? Luzes! Música de suspense! Parangonas! Tambores! Tchá Tchá Tchá!

Como vê, o paradoxo pelo qual me condena não é o único em que incorro. Há muitos, e esse nem sequer é o mais grave, o mais insuportável, o mais insustentável, enfim. Como é que mantenho o título, depois da sua carta? E como é que posso abdicar, quer da sua carta, quer do meu título? Console-se com isto, meu querido amigo, inteligentíssimo e imponente Extraterrestre, ainda que escandalizado e destroçado: sendo você o Extraterrestre, e eu o Humano, como haveríamos de nos entender, de facto?

O que o choca tão profundamente ao ponto de me abandonar de uma vez por todas não é que eu pertença a uma raça tão infame e tão feroz, a auto-denominada humanidade, cuja bondade, como tão bem sublinha, é sempre claudicante, nem são os crimes, nem a brutalidade, nem a avareza que lhe descrevo e nem sequer a minha ingenuidade ou a minha pervasiva incoerência. Nada disso. O que o choca de um modo irreversível e tremendo é que eu reconheça numa multidão tão criminosa e tão frouxa uma «capacidade para sonhar de um modo comunitário», para citar as suas brilhantes e inspiradas palavras.

Você que escreve português como um verdadeiro nativo, é curioso, você não sabe de uma coisa extraordinária mas real, absolutamente real, entre nós, os humanos, que é esta capacidade para sonhar de um modo comunitário. Porque o ladrão nunca quer ser roubado; o assassino não quer ser morto e, mesmo quando se auto-flagela ou suicida é porque no Além sonha com a vida eterna, que de alma e coração persegue. O carrasco jamais se submeterá às próprias torturas; nem o violador se oferecerá para ser violado. Quando o homem ordena à mulher que se cubra com um véu, ele mesmo não se cobre com nenhum véu, e anda de rosto destapado; e o soldado que dispara a sua arma sonha sobreviver incólume e poder regressar a casa, depois da guerra. Quem bate não deseja ser batido; e o rico que conta os tostões e que explora o trabalho dos pobres ou regateia o valor dos seus empregados, esse não se deixa explorar de forma de alguma, e faz-se pagar pelos valores mais elevados. Aquele que mata em nome da religião não ambiciona ser condenado por causa da sua; e se o tirano jamais deseja vergar-se a uma tirania exterior e alheia, o cobarde também deseja que um corajoso o defenda, ou que pelo menos não sejam todos os outros tão cobardes como ele. Até um reles mentiroso, mal ou bem, conta com a verdade das palavras dos outros, mais não seja, de vez em quando!...

Foi Kant quem resumiu de forma notável este aspecto da nossa condição humana, com a seguinte máxima: «Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal.» E não, meu caro extraterrestre, não é paradoxal que eu fale de um mesmo e semelhante mosaico de sonhos, a propósito da nossa tosca humanidade. Sabe quem lhes deu uma das formas mais acabadas, a estes sonhos em comum? Foi depois do flagelo da Segunda Guerra Mundial, que matou mais sessenta e seis milhões de pessoas em todo o mundo, que a recém-criada Organização das Nações Unidas assinou a carta de 20 de Junho de 1945 em que os povos exprimiam a sua determinação «em preservar as gerações futuras do flagelo da guerra; proclamar a fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e valor da pessoa humana, na igualdade de direitos entre homens e mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas; em promover o progresso social e instaurar melhores condições de vida numa maior liberdade.» E foi em 10 de Dezembro de 1948 que a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que foi esboçada pelo canadense Jonh Peters Humphrey e na qual participaram muitas outras pessoas.

Não passou um século, e por todo o lado o mundo sangra. Os homens continuam a matar em nome de Deus, a explorar e a condenar o semelhante na mira do ouro ou de um mero e vão prestígio. É lamentável, mas esta declaração não tem a força da lei. Em muitos, muitos lugares, estes «direitos»... não passam de meras palavras.

Porque é que a sua letra não está inscrita em todos os corações e em todas as mãos, como uma evidência natural, ou como um sopro da natureza?

Talvez porque do infinito, e acima de tudo, nos sopra a indiferença?