Escravos sem voz e sem glória



Meu caro Extraterrestre, já dizia Marx, sobre as condições de trabalho nas fábricas e oficinas europeias há mais de cento e cinquenta anos:

«A tendência imanente da produção capitalista consiste em apropriar-se do trabalho vinte e quatro horas por dia; e como isto é fisicamente impossível no caso de querer explorar sempre as mesmas forças sem interrupção, torna-se preciso, para triunfar deste obstáculo físico, uma alternância entre as forças de trabalho empregadas de noite e as forças de trabalho empregadas de dia, alternância esta que se pode obter por diversos métodos. (...) Todos sabem que este sistema de turnos predominava nos primeiros anos da indústria algodoeira inglesa e que o processo de trabalho ininterrupto durante as horas do dia e da noite é aplicado ainda em muitos ramos industriais da Inglaterra, País de Gales e Escócia. O pessoal compõe-se de homens e mulheres, adultos e crianças dos dois sexos, entre os seis e os dezasseis anos.»

Nos tempos que correm, meu caro Extraterrestre, apesar de progressos inestimáveis em pequenos pontos do globo no que diz respeito aos limites impostos à exploração do trabalho, em defesa da dignidade e da vida humana, são muitos os países e lugares onde se exploram sem escrúpulos e parco ou nenhum pagamento a vida e as horas de adultos e crianças. Onde a exploração do trabalho ainda se encontra protegida por leis que são o orgulho dos povos ditos civilizados, esses mesmos cidadãos educados e altivos que tais leis protegem nunca saberão exactamente por que mãos foram confeccionados os seus ténis Nike ou as suas elegantes calças de ganga. Para alguns, trata-se de uma promiscuidade insuportável e mesmo de um ex-libris da impotência individual perante o mundo. Observe este facto, meu querido Extraterrestre. Hoje, em 2016, na Turquia, chegámos ao ponto de descobrir que fábricas que fornecem roupa à Mango, à Zara e à Marks  & Spencer, grandes marcas internacionais, que vestem milhões de pessoas, estão a empregar crianças sírias a menos de uma libra por hora, crianças que trabalham doze horas por dia em condições absolutamente medonhas!... Pobres gigantes do comércio de roupa ocidental, que não sabiam de nada!... Eles monotorizam e inspeccionam regularmente as suas fábricas, eles querem as melhores condições para os seus trabalhadores!... Simplesmente deslocam as fábricas para lugares onde a exploração do trabalho não está assim tão regulada... mas que mal é que isso tem?... Onde há leis de trabalho grassa o desemprego, à medida que os capitais se escapam para onde possam sugar a energia dos povos. Mas então não é claro que essa gente está num outro patamar, um patamar em que uma libra já vale muito - ou não é?... A indústria multinacional levou-lhes, não a exploração, mas o progresso. É realmente chocante que sejam as crianças sírias ou os refugiados sírios, que fugiram de uma guerra tão medonha e perante a qual somos tão impotentes, mas se forem ciganos, chineses, ou indianos, ou tailandeses, ou nigerianos, qual é o problema?... Não é a lei da concorrência, da mais-valia e da baixa de preços? Não resultará tudo, depois de algumas inevitáveis dores de crescimento, num maravilhoso progresso? E isso não é bom, mas realmente muito bom e maravilhoso para todos? Sempre os pobres têm alguma coisa, e os ricos um pouco mais.

Já citava Marx: «Os nossos escravos brancos são vítimas do trabalho que os leva à sepultura; desgastam-se e morrem, sem tambor nem trombeta.» (1)








(1) Marx, O Capital, Vol. I, Cap. X «O dia de trabalho», p. 161, citação do periódico Morning Star, 23-06-1863.

A velha usura e os novos escravos



A usura é dos procedimentos humanos mais antigos, desde que se inventou a moeda, ou o dinheiro.

É realmente fantástico, meu caro Extraterrestre, que o poder da abstracção humana tenha atingido aquele ponto em que deixámos de trocar serviços por bens ou por outros serviços e passámos a fazer as trocas que são salutares e imprescindíveis para a nossa felicidade e sobrevivência por meio de um símbolo abstracto do valor, isto é, um número. 

Podemos traduzi-lo em ouro, botões, contas de vidro ou papelinhos, pouco interessa. O que nos interessa a nós em particular neste momento é observar como, a partir do momento em que se criou tal facilidade (porque seria uma dificuldade, se eu precisasse dos seus feijões, e tivesse apenas vacas para a troca, e você precisasse, pelo contrário, de lã, seria uma real dificuldade estabelecer entre nós uma relação de comércio), estava eu a dizer, a partir do momento em que se criou uma tal facilidade, logo pululou por todo o lado uma espécie bastante comum de oportunistas que se caracteriza por uma rápida e básica esperteza dirigida a tudo o que é concreto e imediato e quase total ausência de escrúpulos, raciocínio moral ou visão a longo prazo, espécie resiliente, esta, que se dedica a armazenar esses símbolos abstractos, sejam eles ouro, botões, contas de vidro, ou papelinhos, pouco interessa, e a vendê-los a quem deles precise por um valor a que comummente se chama juro e que por sua vez resulta no retorno de todo o ouro, botões, contas de vidro ou papelinhos emprestados a que se soma uma percentagem variável de mais ouro, botões, contas de vidro ou papelinhos, pouco interessa.

Perguntará você, meu querido e inocente Extraterrestre, para que querem as gentes tanto ouro, botões, contas de vidro ou papelinhos?

Só lhe posso dizer que deve ser para forrarem os caixões, no dia em que forem enterrados!

Vivemos nos tempos que correm uma tal desordem económica e política que hoje em dia tanto faz que o cidadão comum leve uma vida sóbria e simples, ou não. Por ele e no seu lugar endividaram-se os próprios governos de cada país que, chicoteados pelas costas e mordidos nas canelas pela máquina financeira que esconde o verdadeiro rosto desta multidão de usurários e bestas internacionais, sugam aos cidadãos até à última gota do valor do seu trabalho, como faziam os antigos senhores feudais endividados aos seus escravos e servos.

Já dizia Marx:

«Enquanto reinar a escravatura, enquanto o sobreproduto for consumido pelo senhor feudal e seu séquito, e proprietários de escravos ou senhores feudais forem presa dos usurários, o modo de produção continuará a ser o mesmo; simplesmente, tornar-se-à mais duro para os trabalhadores. O proprietário de escravos, ou o senhor feudal, endividados, oprimirão ainda mais os seus súbditos na medida em que eles próprios forem oprimidos. Ou ainda, acabam por abrir caminho aos usurários, que se tornam, eles próprios, proprietários ou possuidores de escravos, tais como os cavaleiros da antiga Roma. Os antigos exploradores, cuja exploração era mais ou menos patriarcal, porque era em grande parte um meio de poder político, foram substituídos por oportunistas duros e cobiçosos. Mas o modo de produção não foi modificado em si.» (1)

Hoje em dia chegámos ao ponto em que Estados ditos democráticos e eleitos por sufrágio universal fazem as vezes dos antigos proprietários de escravos e senhores feudais. Agora são os povos inteiros aos milhões que ocupam o lugar dos antigos oprimidos, e os novos escravos nem sequer sabem quem é o seu novo senhor!... Mas houve progressos, meu querido Extraterrestre. Os novos escravos têm mais do que uma capa para cobrir o corpo - e mais do que uma enxerga em que se deitar. Não se lhes pode bater. Têm direito à palavra e não podem ser explorados de sol a sol, sem intervalo. Muito sangue correu para que se conquistassem estes direitos, que é como lhes chamam. Mas os novos escravos vêem-se encurralados nas tramas subtis de outras leis que lhes confiscam a paz, o tempo livre e a esperança, ou mesmo a capacidade para pensar, o que talvez permitisse que se defendessem (mas não é certo).


Quentin Metsys (1514)









(1) Marx, O Capital, Cap. XXXVII «Notas sobre o período pré-capitalista», p. 521.

Sobre o valor instrutivo de um episódio com colher de pau




Nada há de mais curioso e possivelmente de mais repelente para o nosso querido Extraterrestre do que um peculiar aspecto da lógica do desejo humano - chamemos-lhe 
anti-lógica do desejo humano (o que talvez nos deixe escapar por um triz à nossa fatídica incoerência).

Comecemos por uma pequena e singela história, um mínimo exemplo.

Era uma vez uma menina de quatro anos que decidiu que não queria levar os seus brinquedos para a praia.

A menina era uma dessas crianças privilegiadas que têm centenas de brinquedos, sem porventura terem outras coisas que lhes fariam mais falta.

Nem baldes, nem pás, nem moinhos de água, nem redes, nem formas de areia, nem óculos de mergulho, nem bóias, nem patos, nem piscinas, nem bolas, nem barbatanas, a menina não quis nada excepto uma enorme colher de pau, uma enorme colher de pau com pelo menos cinquenta centímetros de comprimento e que era usada para mexer as compotas num enorme panelão.

E assim foi.

A menina foi para a praia com a colher de pau sobre o ombro direito, como se fosse uma picareta.

Na verdade, a menina sentia-se incrivelmente feliz e triunfante, com aquela enorme colher de pau. Toda ela exalava felicidade e orgulho.

Mas a sua alegria durou pouco.

Talvez porque se mostrasse tão contente, ou talvez porque aquela fosse a única colher de pau de toda a praia, foi num abrir e fechar de olhos que a subitamente famosa colher de pau se tornou alvo da cobiça e da rapina de todas as crianças, obrigando a família a uma saída precipitada.

A história foi considerada tão divertida que foi repetida ao longo dos anos, mas o que não deixa de ser realmente notável é como se pode encontrar, numa pequena história tão curta e tão singela, dois elementos fundamentais para a nossa anti-lógica do desejo. 

É que os objectos de desejo são muito menos importantes do que a alegria triunfante exibida por aqueles que os possuem e, a par com este facto, a raridade da oferta e por vezes a dificuldade momentânea da aquisição potenciam o desejo, daí que se possa convencer os seres humanos com menos de nada ou com imagens ardilosas e grosseiras a comprar e a desejar coisas de que não têm qualquer necessidade, como se essas coisas fossem o segredo da sua potencial alegria, e assim há muitos que trabalham e trocam a vida por essas coisas que lhes parecem sobejamente interessantes e porque na verdade foram alvo da manipulação de um instinto tão básico que não lhes aflora esse campo restrito e difícil a que nós, os humanos, tanto gostamos de chamar «consciência».

Enquanto um grupo de humanos «deseja» (ainda que neste caso particular o termo mais rigoroso fosse «cobiça», para não estragar o valor positivo que a actividade de desejar em geral também tem), há sempre um outro grupo que «enriquece».

Pobres dos ocidentais que no tempo da expansão e da colonização foram capazes de zombetar dos selvagens porque trocavam escravos e prisioneiros por contas de vidro, enquanto eles próprios trocavam a vida por pedregulhos de ouro!

Os elementos de cada um dos grupos não escapam a uma predação alternada, porque estão presos numa mesma mecânica, numa mesma máquina. O seu desejo foi capturado por um sistema maior, que se alimenta dele, não como a rapina das crianças da praia se alimentou da visão da portadora feliz da colher de pau, o que seria quase cândido, mas como um parasita que, sorvendo uma outra vida, acabará por colapsar em conjunto com ela.

Você, meu caro Extraterrestre, deve sentir-se tão intimamente repelido com esta nossa actual condição que não quererá sequer aproximar-se, quanto mais contactar-nos.

É o mais certo.