Todos os homens têm um nome



Meu caro extraterrestre, não se desiluda. O mundo é mais do que as notícias que temos dele. Se está um dia de sol, as pernas doridas dóiem-nos de tanto andar à beira do mar. Pergunto-me: «Que saberá você de pernas? Que saberá você de sol?» Se está um dia de sol, o nosso corpo irradia esse suave calor, esse doce cansaço. E essa coisa pequena, essa sensação ínfima, tão suave, como não perdê-la? Se algum dia um escritor souber parar o fluxo infinito que o atravessa, deter absolutamente o tempo, vencer o esquecimento e segurar ao alto toda a alegria de existir e que se esvai no limbo, nesse dia celebraremos. Porque, se estiver sol, os nossos dias cintilam absurdamente. Os aviões voam muito alto e talvez seja possível ver um deles, minúsculo, no céu muito límpido. Ínfimos, ínfimos pontos, quase invisíveis, são os caracóis que trepam por uma parede. Temos por hábito cortar o mato na margem das linhas férreas. E é comum, à beira das praias, haver pegadas no chão de cimento ou asfalto. Pés nus, porque se vêem as marcas dos dedos no chão. Alguém que saiu da água e não se importou de seguir descalço, indiferente à urina dos cães.

África



África é uma das grandes feridas do mundo, aberta pela expansão marítima portuguesa que foi (e é) o orgulho dos tolos e por todos os crimes da Europa subsequentes. Portugal e a sua elite viveram séculos à sombra de roubos e do comércio de escravos e, na esteira de Portugal, muitas outras nações europeias. Mas mesmo depois das descolonizações e declarações de independência, para os povos violados e abusados e para as gerações de homens, mulheres e crianças que suportaram andar com grilhetas nos pés e correntes ao pescoço o martírio da violência continua a reproduzir-se, como uma má e absurda semente.

Na Eritreia, um pequeno país africano à beira do Mar Vermelho que foi colonizado pela Itália entre 1869 e 1941, trinta anos de guerra com a Etiópia deixaram minadas e intransitáveis as terras mais férteis do país. E embora mais de um milhão e meio de pessoas, entre cinco milhões, dependam de ajuda humanitária para comer, a miséria geral não impediu o país de angariar recursos para prover de armas as milícias islâmicas que em 2006 combatiam o frágil governo interino da Somália, seu aliado exangue.

Será que a violência só conhece um único filho - a violência? Imagine um desabamento infinito, meu caro extraterrestre. A violência parece que se reproduz como uma queda de terras num desabamento infinito. Como um grito que gera outro grito e outro e outro e mais outro - de uma alucinada linhagem de herdeiros mutilados - onde haverá fim? 

Apesar de possuir vastos recursos agrícolas, grandes reservas de ouro e urânio, diamantes, café, madeiras e tabaco, a República Centro-Africana é outro dos países mais pobres do mundo. Vampirizado durante sessenta e seis anos pela colonização francesa, este país sem mar e onde se falam mais de oitenta línguas não parou de sofrer os abusos e as atrocidades dos sucessivos tiranos e chefes corruptos que chegam ao poder. Bokassa, David Dacko, André Kolingba, Patassé, Bozizé, todos eles, sem excepção, foram sangrando o povo que se multiplica absurdamente e que morre de fome, forçado a abandonar as terras onde não existe paz.

No Corno de África, a Somália é famosa pela miséria, corrupção e pirataria. Os Dervixes repeliram por quatro vezes com sucesso as investidas do Império Britânico e só em 1920 foram derrotados pelas bombas dos aviões ingleses, tendo sido então transformados num protectorado da Grã-Bretanha, que durou quarenta anos. Num país que vive em guerra civil intermitente desde 1991, sem governo central e sob o jugo dos «senhores da guerra», os homens, as mulheres e as crianças morrem aos milhares. Desde 1991 que os piratas são  uma séria ameaça à navegação, sequestrando navios, petroleiros e toda a tripulação em troco de resgate e impedindo a entrega de mantimentos às populações famintas por mar, num país em que setenta e cinco por cento das crianças estão subnutridas e mais de trinta e cinco por cento morrem antes dos cinco anos.

O Zimbabwe, apesar dos solos férteis e das grandes reservas de ouro, amianto, crómio e carvão, é o país mais pobre do mundo. Colonizado desde o final do século XIX pelos ingleses, a sua independência só foi reconhecida em 1980, depois de um conflito sangrento que durou mais de uma década. Mugabe, que lidera o país desde 1980, tem hoje noventa e dois anos e é directamente responsável pela asfixia do país e do seu povo. Apesar da sua idade, cada vez são mais duras as medidas de autoritarismo, força e crueldade. Quem é que o destrói? Mesmo no limite da extrema miséria e fome do povo o presidente cobiçoso, de olho fixo nos diamantes, ainda conseguiu enviar tropas para combater na terrível guerra civil da República Democrática do Congo, seu aliado estripado, desfeito, sangrado, e onde até as meninas de um e dois anos são violadas, quando tomadas pelas tropas inimigas. Mugabe e a sua mulher, Grace Mugabe, assim como mais cinquenta e um membros do governo, são alvo de sanções por parte dos Estados Unidos e Europa e estão impedidos de viajar nestes dois pontos do mundo. Mas a família Mugabe, riquíssima, habita um palácio que custou vinte e seis milhões de dólares, no país mais pobre do mundo!...

E falta-nos falar do Chade, do Burundi, da Libéria, de Guiné-Bissau...

Que fazemos para entrar nas casas onde em segredo as crianças são batidas pelas mães ou violadas por um primo, por um tio, por um pai? Que fazemos por quem nasce na toca do lobo? Cada um trata de si. Do alto do nosso conforto sabemos que ao longe há quem lute descalço pelo acesso a uma bica de água, quem trabalhe de sol a sol por uma malga de sopa, quem fuja sem sapatos e nada nas mãos para se salvar de uma morte certa debaixo de fogo. Que fazemos? Sangram os países e os homens do mundo, às mãos dos violentos e dos ambiciosos e nós, os confortáveis, que fazemos?

Não chega metade do mundo para pegar ao cólo a outra metade?

As baleias morrem quando dão à costa.


Criança da cidade de Mogadíscio, na Somália, durante a guerra civil.

A meritocracia


Se por um lado no Burundi, um dos dez países mais pobres do mundo, a elite tutsi vampiriza a maioria hutu, deixando o país numa miséria exangue; no outro lado do globo pavoneia-se um candidato republicano, o famoso Donald Trump, que compra um avião a jacto de cem milhões de dólares com uma torneira banhada a ouro de vinte e quatro quilates.

Enquanto nos Estados Unidos o cantor Justin Bieber gasta seiscentos e cinquenta e oito euros em cada corte de cabelo que faz, por não saber onde gastar tanto dinheiro que ganha, do outro lado do oceano acontece que mais de metade da população da Serra Leoa (um país riquíssimo em ouro e diamantes) vive sem água potável e com menos de um dólar por dia.

Tudo acontece ao mesmo tempo, no mesmo mundo!

No Niger, a população esfomeada e sem escolaridade continua a multiplicar-se desenfreadamente, apesar da fome e da terra escassa, devorada pelo grande deserto. Mas em Inglaterra a Princesa Kate compra um carrinho de mil libras para o seu bebé, afinal apenas mais um dos múltiplos e luxuosos acessórios, entre roupas, jóias, relógios, casas, carros e propriedades, com que a magnânima e digníssima família real se adorna.

Veja, este é o nosso mundo! 

Trata-se para alguns do resultado um pouco descontrolado de uma lógica muito defensável e a que chamam meritocracia.

Por isso, a quem me hei-de dirigir, mesmo repudiado, senão a si, meu caro extraterrestre?

Se houver um frango para vinte seres humanos mais vale que um deles o devore todo inteiro e se alimente depois da carne dos restantes dezanove cadáveres, não concorda?