O mundo, a crueldade, o absurdo e a amante deles



Neste mundo - o azul planeta que gira entre Vénus e Marte e cujo fim está decretado pela morte do sol -
 
neste mundo em que tantos países ricos em petróleo, ouro e diamantes deixam as suas gentes à fome e as crianças à morte - 
 
em que as dinastias dos ricos distribuem armas para as guerras que fazem florescer os negócios convenientes, independentemente dos cadáveres formulados -
 
em que os poderosos ainda calam com morte e prisão as vozes desconformes -

em que a loucura floresce apesar das inteligências agudas -

em que as barbaridades são alardeadas e vendidas - com alegria -

e a filosofia e a poesia - emudecidas -

neste mundo em que as pessoas valem pouco ou nada -

mas os mercados e o dinheiro são mais que deuses - e mandam nos povos -

neste mundo a crueldade e o absurdo dançam numa roda de pleno caos que ergue cada vez mais alto a crina de uma loucura perigosa e estridente.
 
Grassa a indiferença, porque, quando a desordem é muita, embotam-se a inteligência e os sentidos.

E a amante deles?

Chama-se cobiça.
 

Ocidentais que desejam a Jihad



Muhammad Oda Dakhlalla e Jaelyn Delshaun Young, um jovem de vinte e dois anos, formado em psicologia, e uma jovem de dezanove, prestes a ingressar na faculdade, ambos cidadãos americanos, foram presos no aeroporto de Columbus, no Mississippi, sob a acusação de pretenderem alegadamente juntar-se à Guerra Santa do Estado Islâmico.
 
Dakhlalla, pelas declarações que fez a um falso agente intermediário do ISIS e que na verdade pertencia à CIA, mostrou-se disponível para participar no movimento terrorista com os seus conhecimentos em media e computadores e, além disso, mostrou-se pronto para «lutar». O discurso de Young, um pouco diferente, focava-se em ajudar os doentes na frente de batalha e em destruir o conjunto de «mentiras» que circulam no ocidente sobre o ISIS. Dakhlalla pertence a uma família muçulmana, que se mostrou chocada com as intenções do filho, enquanto Young se converteu recentemente, porventura durante o curto namoro que precedeu o casamento de ambos, antes da partida.
 
É conhecida a força de atracção do Estado Islâmico sobre certos grupos de jovens ocidentais, tanto rapazes, como raparigas, e não apenas religiosos e devotos. Como sabemos, centenas foram já recrutados e engrossam as fileiras dos combatentes pelo Estado Islâmico.
 
Se alguém que vive numa sociedade democrática e pacífica, onde estão instituídos estados de direito e o respeito pelos direitos humanos e pela igualdade de oportunidades entre os sexos, se alguém que é educado no contexto de tais ideais, mesmo que imperfeitos na vida prática, se rende a uma guerra que prima pela violência e pelo terror radical, pela escravização das raparigas, pela morte dos homossexuais, pela destruição da arte e pela aplicação brutal da Sharia, uma lei religiosa de perfil medieval - é caso para perguntar: qual a sua motivação?
 
Que procuram estes rapazes e, de um modo ainda mais desconcertante, estas raparigas? Onde foi que fermentou um tal ódio à civilização que os viu nascer? De onde vem a violência ou o desespero que lhes motiva uma tal fuga e uma tal vingança?
 
Porventura alguns de nós acreditaram que havia uma coisa a que se poderia chamar «progresso». Avançar para a implementação global de um estado de direito em que os direitos humanos, valorizados, amados e defendidos, permitissem construir um mundo cada vez aberto e mais justo para todos os que nele habitam - um mundo onde a paz e o pão fossem casa para todos, e não apenas para alguns, um mundo em que a celebração da existência de cada um, na sua singularidade, fosse a atitude natural e criadora de toda a riqueza comum - esta seria a evolução natural e desejada a que gostaríamos de chamar «progresso».
 
O que os factos demonstram, porém, é que a abolição da barbárie é como a terra conquistada ao mar na Holanda. Talvez não seja, como gostaríamos de acreditar, uma coisa «natural», mas é uma conquista frágil e dolorosa que na realidade se fez com mortes, sofrimento, sangue e muito desespero. Algo que se pode desagregar a um ritmo alucinante sob uma nova ordem mundial, do mesmo modo que cai um baralho de cartas ou se desfaz um castelo de areia à beira-mar, e algo por que teremos de lutar com maior veemência ainda, e porventura com maior sacrifício e paixão.
 
Há mentes na terra mais insondáveis que em qualquer planeta distante, a muitos milhões de anos luz.
 
 

Sahar Gul (2011)


Sahar Gul foi vendida como noiva aos treze anos de idade, na província de Baghlan, no Afeganistão.
 
Depois da morte do pai, aos nove anos de idade, Sahar Gul trabalhou na casa do seu irmão Mohamed, cuidando do gado, colhendo a fruta e fazendo tijolos de esterco para combustível.
 
Era analfabeta, pois não tinha oportunidade de ir à escola.
 
Sahar Gul resistiu a consumar o casamento durante semanas.
 
O marido, a cunhada, o sogro e a sogra batiam-lhe com canos de ferro quente e deixavam-na passar fome.
 
Sahar Gul conseguiu fugir e pedir ajuda à polícia, mas foi devolvida à casa do marido, com a promessa de que este não a torturaria mais.
 
Porque se recusou a prostituir e a dar o dinheiro à família, Sahar Gul continuou a ser torturada.
 
Preocupado porque não conseguia contactá-la, Mohamed veio a descobri-la num curral e num tal estado de fraqueza que teve de ser dali tirada num carrinho de mão.
 
O marido e a família foram condenados a dez anos de prisão, mas passado um ano foram colocados de novo em liberdade.
 
Eles foram capazes de arrancar  as unhas e o cabelo de uma menina e de torturar uma criança de um modo que somos incapazes de reproduzir, tal é a angústia e horror que estes factos nos causam, mas estão em liberdade.
 
E nós perguntamos - e na aldeia onde viviam?
 
Ninguém ouviu os gritos?
 
Ninguém teve compaixão das lágrimas?
 
Em roda todos viraram a cara?
 
Todos se calaram?
 
Para ninguém foi insuportável o sofrimento de uma menina indefesa e inocente, ao ponto de agir, de fazer qualquer coisa?

Enquanto grassa a fogo solto a crueldade e os seres humanos tratam as meninas e as mulheres como se fossem coisas e objectos que se podem vender, usar, exibir ou comprar, que humanidade seremos?
 

Os pássaros e as raparigas na Índia



Apesar de todos os esforços que se fazem para modificar os comportamentos relativamente às mulheres, é sabido que o número de crimes sexuais continua a aumentar na Índia.
 
Este é um dos países mais populosos do mundo e uma das grandes potências económicas da Ásia.

Apesar do regime de castas, a Índia é considerada uma democracia parlamentar - o que é um perfeito absurdo.

Não pode haver democracia quando cento e sessenta e seis milhões de pessoas num país não têm voz.
 
Rica em biodiversidade, em pessoas, na cultura e em diversidade linguística e religiosa, a Índia viu nascer o hinduísmo, o budismo, o jainismo e o sikhismo.
 
Contudo, apesar do endurecimento das leis, os conselhos de aldeãos continuam a aplicar condenações que implicam a violação em grupo das raparigas, e muitas vezes a sua morte.
 
Foi o que aconteceu em 2014 a uma mulher que manteve uma relação proibida com um homem de outra comunidade durante cinco anos, tendo sido obrigada pelo conselho de aldeões a pagar uma soma equivalente a trezentos euros pelo crime.
 
«A família não pode pagar. Por isso, desfrutem da rapariga e divirtam-se.» Foi a sentença do conselho.
 
Por outro lado, é sabido que as raparigas que pertencem à casta dos intocáveis estão sujeitas às maiores brutalidades.
 
Em 2014, a violação em grupo e enforcamento de duas adolescentes, de catorze e dezasseis anos, em Badaun, no estado de Uttar Pradesh, moveu a Amnistia Internacional.
 
O pai de uma das adolescentes contou que procurou a ajuda da polícia quando deu pela ausência demorada da filha e da prima, mas o polícia de serviço naquela noite recusou-se a registar a queixa e a investigar o desaparecimento.
 
Pelo contrário, esbofeteou-o, depois de o questionar sobre a casta a que pertencia.

As chamadas castas inferiores são grupos de pessoas também conhecidas como «intocáveis» ou «sem casta» na Índia, formados por uma população mista, com uma variedade de idiomas e religiões, e representam cerca de dezasseis por cento da população total do país, ou seja, cerca de cento e sessenta e seis milhões de pessoas.
 
Desculpe-me, caro leitor, mas tenho de interromper esta descrição porque estou com vontade de vomitar.
 
Agarramos o estômago mas o peso da nossa impotência é como uma malha obtusa que nos asfixia e enjoa - que nos arrasta até ao limite náusea.
 
Porque foi também na Índia no ano 2015 que a corte de Nova Deli decidiu que os pássaros têm direito de viver com dignidade e fora de gaiolas, voando livremente.
 
«Tenho claro em minha mente que todos os pássaros têm os direitos fundamentais de voar nos céus e que os seres humanos não têm o direito de mantê-los presos em gaiolas para satisfazer os seus propósitos egoístas ou o que quer que seja.» - afirmou o juiz.
 
Na Índia, como no mundo, vemos florescer e apodrecer a humanidade num mesmo espaço, num mesmo tempo, num mesmo instante.
 
Não sabemos ainda porque é que a palavra «paradoxo» se tornou necessária - a ponto de existir.
 
Bastava dizer - «ser-humano».