As primeiras chuvas



O coração necessário para salvar Salvador Sobral pode chegar a qualquer momento.
«Com as primeiras chuvas, surgem os acidentes de viação
e aumenta a oferta de corações saudáveis.»
- avança o presidente da Associação Portuguesa de Cardiologia. 

in «TV Guia»,
nº 2022, 20.10.2017
 
 
 

Excesso de Mortos

 
 

 
 
MEDICINA LEGAL COM EXCESSO DE MORTOS
 
QUE NINGUÉM RECLAMA
 
 
 
Instituto desmente, no entanto, que haja cadáveres nos corredores.
 
 
 
 
 
 
 
(Notícia do Jornal de Notícias em 19.5.2017)


Nem o futuro é previsível, nem o presente é garantido




 
Meu caro Extraterrestre, eis um aspecto curioso da nossa vida quotidiana.
 
Não é frequente ocorrer-nos que encontrar iogurtes no corredor dos produtos refrigerados, no supermercado, seja uma coisa que pode não ser possível amanhã.
 
Nos nossos supermercados, é possível encontrar uma gama de iogurtes absolutamente espantosa. Magros, gordos, gregos, naturais, biológicos, medicinais, com frutas, com cereais, com chocolate, com smarties, com doce, de leite, de soja, de amêndoa...
 
Parece que a abundância de todo o globo se encontra ao alcance de um carrinho de mão.
 
Bacalhau da noruega, camarões tigre de Angola, manga do Brasil, ananás dos Açores, líchias da China, mostarda de Inglaterra, Ketchup da Alemanha, arroz dos Himalaias...
 
A lista é infindável.
 
Você não pode imaginar quantas marcas de papel higiénico existem à nossa disposição, num supermercado.
 
Folha dupla, folha tripla, folha simples, acolchoado, macio, perfumado, colorido, florido, reciclado...
 
Entrar num grande supermercado é uma experiência estranha, difícil, fascinante e avassaladora. Pode dar-nos uma sensação de irrealidade, de claustrofobia, de sufoco.
 
As maçãs são enceradas, para terem mais brilho.
 
Está tudo lavado, brilhante, embalado, colorido.
 
Por todo o lado há etiquetas, rótulos, preços, tabuletas, cores faiscantes, promoções, lâmpadas e instruções.
 
Não é frequente ocorrer-nos que os supermercados não estejam lá, iguais a si mesmos, no dia seguinte, como não é frequente ocorrer-nos que não haja água quente nas torneiras da nossa casa, luz nas lâmpadas e electricidade nas máquinas, como internet no computador, e telefones nas malas.
 
Os nossos carros andam - e há estradas por todo o lado.
 
Temos roupa lavada e passada a ferro, todos os dias.

No entanto, como você naturalmente deve saber, meu caro Extraterrestre, na segunda metade do século XIX, Karl Marx observou, de uma forma bastante admirável, n' O Capital, que «a tendência imanente da produção capitalista consiste em apropriar-se do trabalho durante as vinte e quatro horas do dia». (1)
 
Talvez não nos ocorra que os resultados notáveis desta tendência de crescimento e de apropriação total se encontram, tanto nas nossas casas, como nos modernos supermercados.
 
Que há de mais maravilhoso e confortável que uma casa moderna, com as suas máquinas, as suas luzes, fontes de calor e de água e todas as comodidades que couberam algum dia na imaginação dos homens?

Quereremos algum dia voltar a viver de livre vontade numa cabana, em condições realmente idênticas às da Idade Média, sem água, sem luz e sem telefone?
 
No século XIX e ainda hoje, embora não em todo o globo, mas apenas naqueles locais em que a miséria é tão grande que os homens se sujeitam a qualquer trabalho a troco de um pouco de pão (locais que não são assim tão pequenos, nem tão pouco povoados, nem tão rarefeitos como o brilho de uma estrela distante), a apropriação do dia de trabalho pelas grandes empresas e multinacionais, que hoje «deslocalizam» as suas fábricas (ou melhor, transferem-se para esses paraísos do trabalho barato), com vista ao aumento da mais-valia e do lucro, continua a fazer singrar e a expandir, de um modo maravilhoso e verdadeiramente digno de admiração, este nosso mundo da super-abundância.
 
Claro que nós temos muita dificuldade em pensar nos pilares que sustentam a nossa abundância, meu querido Extraterrestre, pois, como decerto se vai apercebendo, o pensamento humano sofre de limitações extremas, que são comuns a todos nós, e dificilmente se separa do estômago, que é um dos órgãos mais exigentes e tirânicos do nosso corpo.

Será que você também tem um estômago, ou será que em si as forças criativas do universo se realizaram de tal modo que não o obrigam a delapidar, pelo desejo, pela necessidade, pela cobiça, ou pela fome, as outras obras de Deus?

Parece que é uma proeza ser capaz de pensar com o estômago realmente vazio e, uma vez de barriga cheia, também se torna difícil reflectir em certos assuntos.
 
Marx cita Naylor e Vickers, os fabricantes de aço da empresa que foi fundada em 1828 e que mais tarde veio a produzir armamento, equipamento militar aeronáutico e automóveis, tendo comprado em 1980 o fabricante de motores da Rolls Royce que, por sua vez, em 1998 (há menos de vinte anos), foi vendido à Volkswagen. Nesses tempos remotos e hoje quase esquecidos, diziam os dois distintos empresários:
 
«Os rapazes nada sofrem com o calor. A temperatura é de trinta a trinta e dois graus centígrados. Na forja e no laminador os braços trabalham dia e noite, revezando-se, mas toda a obra faz-se de dia, das seis da manhã às seis da tarde. Alguns operários trabalham continuamente de noite sem se revezarem, isto é, nunca de dia. Não nos parece que o trabalho, quer se execute de dia, quer de noite, faça a mínima diferença à saúde e as pessoas dormem melhor quando gozam do mesmo período de repouso do que quando este período varia. Cerca de vinte crianças trabalham de noite com os homens. Não poderíamos sair-nos bem sem o trabalho nocturno de rapazes abaixo dos dezoito anos. Haveria um grande aumento nos gastos de produção. É difícil ter contramestres hábeis e «braços» inteligentes; mas rapazes arranjam-se tantos quantos se queiram.» (1)

Claro que Karl Marx, no século XIX, não imagina ainda o destino particular que teria a empresa Naylor and Vickers, no século XXI, quase duzentos anos depois da sua fundação.

Mas seria a coisa mais interessante e produtiva, para cada empresa citada n' O Capital, investigar o seu destino posterior, a linhagem que produziu e, a partir dessa descrição, produzir uma imagem da nossa história global.

Citando a Comissão Parlamentar sobre a Falsificação das Subsistências (1855-1856) e o relatório do Dr. Hassall, intitulado «Adulterações Descobertas», Marx comenta:

«O inglês, sempre a cavalo na sua Bíblia, sabia muito bem que o homem é destinado a comer o pão com o suor do seu rosto, desde que a graça divina não tenha feito dele um capitalista, um grande proprietário, ou um tachista; mas ignorava que estivesse condenado a comer no pão "uma certa quantidade de suor humano diluído em teias de aranha, cadáveres de baratas, fermento apodrecido, resíduos de úlceras purulentas, sem falar do alúmen, da areia e de outros ingredientes minerais de idêntico sabor."» (2)

E continua:

«Os padeiros full priced (que vendem o pão ao preço normal) trabalham das onze da noite às oito da manhã do dia imediato, quase sem interrupção; empregam-se depois a transportar o pão até às quatro, cinco, seis e sete horas e, algumas vezes, a fazer biscoitos na padaria. Terminada a sua tarefa, permitem-lhes dormir quase seis horas; muitas vezes dormem apenas cinco ou quatro horas. Às sextas-feiras, o trabalho começa sempre mais cedo, em geral às dez da noite, e continua sem parar até às oito do dia seguinte. Nas padarias de primeira classe, em que o pão se vende ao preço normal, mesmo nos Domingos, há quatro ou cinco horas de trabalho preparatório para o dia seguinte. Os padeiros que vendem o pão abaixo do preço normal - e estes formam, como já observámos, mais de três quartos dos padeiros de Londres - são sujeitos a mais longas horas de trabalho; mas o seu trabalho executa-se quase por completo na padaria, porque os patrões, exceptuando algumas entregas aos comerciantes retalhistas, só vendem nas suas próprias lojas. Às sextas-feiras, o trabalho começa nestas padarias às dez da noite e prolonga-se até à meia-noite de Domingo ou ainda mais. Quanto aos fabricantes de pão que vendem abaixo do preço normal, reconhecem que é o trabalho "não pago" dos operários (the unpaid labour of the men) que lhes permite fazer concorrência. E o padeiro de "preço normal" acusa os concorrentes de "preço abaixo do normal", perante a Comissão de Investigação, como se fossem ladrões de trabalho alheio e falsificadores: - "Só têm êxito porque enganam o público e obtêm dos seus operários o trabalho de dezoito horas pelo preço de doze."» (3)
 
Meu querido Extraterrestre, meu compreensivo e paciente amigo, a quem apesar de tudo me posso dirigir e a quem posso escrever, mesmo depois das nossas elegantes e cordiais cartas de zanga e ruptura, é claro que tudo isto se passou no século XIX, não no século XXI.

Agora, precisamente neste luminoso segundo, meu inestimável amigo, meu inteligente e delicado Extraterrestre, porventura e desejavelmente desprovido de estômago, agora estamos no inaudito, glorioso, complexo e progressista século XXI.
 
Ora, neste nosso presente amiúde conturbado, quando se vem a saber, preto no branco, por exemplo, que a Apple, perto de Xangai, na Pegatron, produz os I-Phone 6 em condições de trabalho que em tudo se assemelham às dos padeiros ingleses do século XIX a preço normal (4), ou que, na Turquia, a indústria têxtil emprega crianças órfãs refugiadas em condições que pouco diferem das dos rapazitos que trabalhavam para Naylor e Vickers em 1830 (5), tudo isto, de certa forma, é totalmente diferente, quiçá por causa da redacção da Carta dos Direitos Humanos, quiçá por causa da invenção da bomba nuclear, do relógio digital, do computador pessoal, do ecrã táctil ou do sufrágio universal.

Do mesmo modo que, aqui e ali, um sobrevivente de guerra, por não ter morrido, se pode sentir exaurido e estrangulado pela culpa, diante da morte dos seus familiares e amigos, assim também alguns dos que escapam à miséria, os privilegiados da abundância, em vez de felizes, podem sentir-se irremediavelmente culpados e responsáveis diante da miséria dos seus semelhantes e do lixo que diariamente produzem, em sacos limpos e que se vendem em rolos, para colocar nos contentores.

«Trabalhar até à morte, eis a ordem do dia, não só nas oficinas das modistas mas em toda e qualquer oficina. Vamos ver por exemplo um ferreiro. A dar crédito aos poetas, não há homens mais robustos, mais transbordantes de vida e de alegria do que os ferreiros. Levantam-se de manhã cedo, produzem faíscas na forja antes do nascer do sol. Comem, bebem e dormem como ninguém. Sob o ponto de vista físico, é verdade que, se o trabalho for moderado, encontramo-nos perante uma das melhores condições humanas. Mas sigamos um ferreiro à cidade e examinemos o peso de trabalho posto sobre este homem forte e que nível ocupa na lista de mortalidade do nosso país. Em Marylebone (um dos maiores bairros de Londres) os ferreiros morrem na proporção de trinta e um em mil, todos os anos, número que excede em onze a média da mortalidade dos adultos em Inglaterra. Esta ocupação, uma arte quase instintiva da humanidade, torna-se, pelo simples excesso de trabalho, destruidora do homem. Um ferreiro pode dar em cada dia muitas marteladas, muitos passos, muitas inspirações, executar muito trabalho, e viver apenas cinquenta anos. Se o forçarem a dar tantas marteladas a mais, a dar muitos mais passos por dia, a respirar mais tantas vezes acima da média, somando todos estes excessos ao dispêndio normal de energia, sabem qual será o resultado? Morrerá aos trinta e sete em vez de morrer aos cinquenta.» (6)

Meu querido Extraterrestre, você sabia que as raparigas também jogavam à bola em bikini, na Sicília, no século III depois de Cristo, isto é, há mil e setecentos anos atrás?

Depois, no século XX, muito depois de as mulheres terem sido proibidas de mostrar os tornozelos ou de tomarem banho sem uma camisa bem comprida por cima, até aos pés, porque olharem para o seu próprio corpo poderia resultar em pecado mortal, inventou-se o bikini.





 
 





(1) MARX, Karl, «Capítulo X - O dia de trabalho: IV - Trabalho de dia e de noite. Sistema de turnos» in O Capital, Vol. I (Lisboa: Delfos, 1973, versão integral traduzida por António Dias Gomes), p. 163.

(2) Id., «Capítulo X - III - O dia de trabalho nos ramos industriais ingleses em que a exploração não é limitada por lei», p. 157.

(3) Id., p. 158.

(4) http://www.bbc.com/news/business-30532463

(5) http://www.bbc.com/news/business-30532463

(6) Id., «Capítulo X - III - O dia de trabalho nos ramos industriais ingleses em que a exploração não é limitada por lei», p. 161.

 

Auchwitz








Para onde iam os cabelos 

das mulheres incineradas
 
nos crematórios de Auchwitz?



 

Parece que serviam, sobretudo,
para o isolamento acústico
dos submarinos.








 

Alfentanil



Alfentanil.
Bruprenorfina.
Fentanil.
Codeína.
Fecha os olhos,
amigo - sorri.
Heroína. Metadona.
Morfina. Nalbufina.
Trabalhadores de todo o mundo!...
Ouvi!...
Não deixem de colher as papoilas!...
Eia!... Juntem as sementes -
que a dor agora vai voar!...
Ah!… Bela dor!... 
Adeus.
Oxicodona.
Petidina.
Ra-mi-fen-ta-nil.
Sufentanil.
Esqueçam a morte.
Esqueçam, esqueçam.
Di-hi-dro-co-de-í-na.
Tramadol.
Esqueçam o crime. A culpa.
O desejo. O pequeno-almoço.
As vítimas do holocausto. 
O absurdo.
Soltem de vez as amarras!...
Apaguem de um só golpe
todas as lâmpadas!...
Com a máxima leveza
e a insuperável elegância
de uma espadeirada bem cruel
- e das mais fortes -
abulam os raciocínios, a lógica,
a necessidade e as consequências.
Ah!... Que delícia!...
Quando nasci deve ter sido assim.
Assim fluído.  Assim suspenso.
Assim livre. Assim veloz.
Só um raio de luz de chama infinita -
estrela cósmica cadente
de cauda divina indefinida
e quente quente quente... Ah!...
Querem mais do que isto?...
Escrevam - Um raio de luz
talvez seja um animal. 
Juntem sementes em sacos.
Juntem-nas em cilos que cheguem aos céus
com uma escada em caracol à volta
e que nós subamos por ela,
aos tombos - com flores na testa,
pés descalços
e pássaros nas palmas das mãos
e perguntemos a Deus,
como Deus perguntou a Caim: 
O que é isto?...
O que fizeste?...
Mas primeiro dizemos boa tarde.
Não somos indelicados.
Ó leões nascidos na jaula!...
Sermos... e não sermos mais…
Só porque prefere, 
em vez dos frutos da terra, 
o sangue dos animais,
Deus é agora o novo Caim.
Trepem!… Trepem!…
Lá no topo da bela escada
que sobe aos céus em caracol
nós os privilegiados
podemos sorrir embevecidos
para Deus. Mas ai
que nos voam das mãos
os pássaros, as borboletas,
os cigarros e os papillons 
que trazíamos ao pescoço
e já agora nos pulsos
(só para enfeitar).
Dançamos uma valsa?...
Não temos nada a reclamar.
Deus é belo - e a vida também.
Que é isto que vejo?
Um monóculo?!
Ah... é meu... 
Desculpe. Deixei cair.
Quem disse que Deus
alguma vez usou monóculo?
Assim é que era!...
Que luzinhas tão simpáticas.
Já não se erguem muralhas
por dentro da carne.
Já não há nós nem amarras
nem entre os ossos -
existem tendões.
Ó corpo sem cordas nem traves!...
Nem figura. Nem sepultura.
Nem peso nem divisões
entre a terra e os pés
ou entre as pernas
e a cintura de um chapéu
que esteja enfeitado
com uma pena de falcão,
uma fita - e uma sineta.
Por dentro da carne - nenhum órgão.
Ó alma sem andaimes nenhuns!...
Fzzzz!....
Nem respirar. Nem caminhar.
Nem rumo. Nem coração.
É só onda
- a curva suspensa -
sem princípio nem fim.
Sombra, rasto
- poeira ou espuma -
que é como a cauda
de uma estrela infinita.
 Arde, arde, arde!...
Meu Deus... - como ardes!...
Já não somos
os escravos cardíacos das estrelas.
Baloiçamos do nosso coração
como um leve corpo descendente
que penda de um pára-quedas ao sol.
Não olhamos para baixo.
Não ficamos com vertigens.
Mas só com receita médica.
Nos países civilizados é assim.
Os opiáceos não circulam livremente,
ainda que os ingleses, esses rafeiros,
os trocassem no século XIX
por porcelanas, sedas e chá,
e por esse comércio se bateram
contra os chineses, ganhando
a ilha de Hong-Kong 
por cento e cinquenta e cinco anos.
Ai!... Feliz de ti
se te arrancam um dente
e colocam um implante
- estás como quem levou um soco na cara -
e como não leste a bula, andas tão contente,
nem sabes porquê, mas sentes 
que é melhor tomar mais um
daqueles comprimidos.
Sempre há o picante, o sono,
o álcool, o clorofórmio,
o sexo, as fantasias,
e talvez o adultério.
Montem a galope nas nuvens,
vá, não tenham vergonha!... 
Cerimónias para quê?...
Em cima das nuvens pode-se fazer
nudismo e pairar à vontade,
tal como os anjos no tecto
da Capela Sistina em Roma.
Só há uma coisa
que é mesmo importante
que é não esquecer a bolsinha
com o leite de côco,
porque aos que trepam ligeiros
pelas costas dos deuses
sempre é útil o gin, 
o vodka, o absinto,
as benzodiazepinas, 
o propofol - e o bronzeador.
Toca a trabalhar, portanto.
Já que a realidade não transige,
desligam-se uns neurotransmissores
do flébil sistema neuronal.
Sempre soubemos fazer isso.
Ah!.. mas quem diria -
que afinal haveria
receptores opióides
nos sistemas neuronais
do intestino?
Faz sentido.
O corpo sabia.
Assaz o estômago dói
quando se ama.
Deve ser por causa
dos receptores opióides
do intestino.


Alfentanil.
Bruprenorfina.
Fentanil.
Codeína.
Fecha os olhos,
amigo - sorri.
Heroína. Metadona.
Morfina. Nalbufina.
Trabalhadores de todo o mundo!...
Ouvi!...
Não deixem de colher as papoilas!...
Eia!... Juntem as sementes -
que a dor agora vai voar!...
Ah!.. Bela dor!... 
Adeus.
Oxicodona.
Petidina.
Ra-mi-fen-ta-nil.
Sufentanil.
Esqueçam a morte.
Esqueçam, esqueçam.
Di-hi-dro-co-de-í-na.
Tramadol.
Esqueçam o crime. A culpa.
O desejo. O pequeno-almoço.
As vítimas do holocausto. 
O absurdo.
Soltem de vez as amarras!...
Apaguem de um só golpe
todas as lâmpadas!...
Com a máxima leveza
e a insuperável elegância
de uma espadeirada bem cruel
- e das mais fortes -
abulam os raciocínios, a lógica,
a necessidade e as consequências.
Ah!... Que delícia!...
Quando nasci deve ter sido assim.
Assim fluído.  Assim suspenso.
Assim livre. Assim veloz.
Só um raio de luz de chama infinita -
estrela cósmica cadente
de cauda divina indefinida
e quente quente quente... Ah!...
Querem mais do que isto?...
Escrevam - Um raio de luz
talvez seja um animal. 
Eia!... Eia!...
Juntem sementes em sacos.
Juntem-nas em cilos que cheguem aos céus
com uma escada em caracol à volta
e que nós subamos por ela,
aos tombos - com flores na testa,
pés descalços
e pássaros nas palmas das mãos
e perguntemos a Deus,
como Deus perguntou a Caim: 
O que é isto?...
O que fizeste?...
Mas primeiro dizemos boa tarde.
Não somos indelicados.
Ah!... Ó leões nascidos na jaula!...
Sermos... e não sermos mais.
Só porque prefere, 
em vez dos frutos da terra, 
o sangue dos animais,
Deus é agora o novo Caim.
Lá no topo da bela escada
que sobe aos céus em caracol
nós hoje os privilegiados
podemos sorrir embevecidos
para Deus. Mas ai
que nos voam das mãos
os pássaros, as borboletas,
os cigarros e os os papillons 
que trazíamos ao pescoço
e já agora nos pulsos
(só para enfeitar).
Dançamos uma valsa?...
Não temos nada a reclamar.
Deus é belo - e a vida também.
Que é isto que vejo?
Um monóculo?!
Ah... é meu... 
Desculpe. Deixei cair.
Quem disse que Deus
alguma vez usou monóculo?
Assim é que era!...
Que luzinhas tão simpáticas.
Eia!... Eia!...
Já não se erguem muralhas
por dentro da carne.
Já não há nós nem amarras
nem entre os ossos -
existem tendões.
Ó corpo sem cordas nem traves!...
Nem figura. Nem sepultura.
Nem peso nem divisões
entre a terra e os pés
ou entre as pernas
e a cintura de um chapéu
que esteja enfeitado
com uma pena de falcão,
uma fita - e uma sineta.
Por dentro da carne - nenhum órgão.
Ó alma sem andaimes nenhuns!...
Fzzzz!....
Nem respirar. Nem caminhar.
Nem rumo. Nem coração.
É só onda
- a curva suspensa -
sem princípio nem fim.
Sombra, rasto
- poeira ou espuma -
que é como a cauda
de uma estrela infinita.
 Arde, arde, arde!...
Meu Deus... - como ardes!...
Já não somos
os escravos cardíacos das estrelas.
Baloiçamos do nosso coração
como um leve corpo descendente
que penda de um pára-quedas ao sol.
Não olhamos para baixo.
Não ficamos com vertigens.
Mas só com receita médica.
Nos países civilizados é assim.
Os opiáceos não circulam livremente,
ainda que os ingleses, esses rafeiros,
os trocassem no século XIX
por porcelanas, sedas e chá,
e por esse comércio se bateram
contra os chineses, ganhando
a ilha de Hong-Kong 
por cento e cinquenta e cinco anos.
Ai!... Feliz de ti
se te arrancam um dente
e colocam um implante
- estás como quem levou um soco na cara -
e como não leste a bula, andas tão contente,
nem sabes porquê, mas sentes 
que é melhor tomar mais um
daqueles comprimidos.
Sempre há o picante, o sono,
o álcool, o clorofórmio,
o sexo, as fantasias,
e talvez o adultério.
Montem a galope nas nuvens,
vá, não tenham vergonha!...
Eia!...
Cerimónias para quê?...
Em cima das nuvens pode-se fazer
nudismo e pairar à vontade,
tal como os anjos no tecto
da Capela Sistina em Roma.
Só há uma coisa
que é mesmo importante
que é não esquecer a bolsinha
com o leite de côco.
Porque aos que trepam ligeiros
pelas costas dos deuses
sempre é útil o gin, 
o vodka, o absinto,
as benzodiazepinas, 
o propofol - e o bronzeador.
Toca a trabalhar, portanto.
Já que a realidade não transige,
desligam-se uns neurotransmissores
do flébil sistema neuronal.
Sempre soubemos fazer isso.
Ah!.. mas quem diria -
que afinal haveria
receptores opióides
nos sistemas neuronais
do intestino?
Faz sentido.
O corpo sabia.
Assaz o estômago dói
quando se ama.
Deve ser por causa
dos receptores opióides
do intestino.










Afeganistão




Por todo este planeta, todos os dias, a todas as horas do dia, meu querido Extraterrestre, são praticados roubos, extorsões, violações, actos de tortura, de rapto e homicídio que ficam sem condenação, sem verdade, sem justiça, sem reparação - totalmente impunes.

São aos milhões, são incontáveis - estes actos. Os humanos tornam-se iguais a vespas que se chacinam umas às outras; iguais a montanhas que desabam num tremor de terra sufocando povos e animais, indistintamente; iguais às forças cegas que lançam um tsunami sobre uma cidade populosa, arrasando tudo.

Detenha-se por uns momentos no Afeganistão, meu querido Extraterrestre.

O Afeganistão é um grande país entre altas montanhas, sem mar, num enclave estratégico entre a China, o Paquistão, o Irão, o Uzbequistão, o Tajiquistão e o Turcomenistão, e que em tempos foi atravessado pela Rota da Seda. Rico em reservas minerais ainda por explorar, em petróleo, em gás natural, em pedras preciosas, em lítio, ouro, carvão, cobre, crómio e outros minérios raros, o Afeganistão é um dos países mais pobres do mundo, devido a mais de quatro décadas de guerra. Em 2007, o Serviço Geológico dos Estados Unidos estimou que os depósitos minerais por explorar no Afeganistão valem entre 900 bilhões a 3 trilhões de dólares, e houve até quem declarasse que o Afeganistão poderia ser a Arábia Saudita do lítio. Mas um terço da população afegã está deslocada devido aos conflitos armados e a maior parte vive com menos de um dólar por dia. O Afeganistão também é rico em água, em neve, em rios e em lagos, mas o país sofre dolorosamente com secas sucessivas, uma vez que não tem sistemas de irrigação, nem canalização, nem saneamento. A esperança de vida de um homem nascido neste país não ultrapassa os quarenta anos - e apenas vinte por cento das mulheres e metade dos homens tem acesso à instrução. Desde a intervenção dos Estados Unidos iniciada em 2001, a produção de ópio tem vindo a aumentar e o Afeganistão transformou-se no maior produtor de ópio do mundo, à frente da Birmânia, em 2007. Esta produção equivale a 64 bilhões de dólares, mas apenas um quarto deste valor reverte para os agricultores e suas famílias, cerca de duzentas mil. Calcula-se que mais de um milhão e quinhentas mil pessoas dependam desta produção. O resto reverte para os oficiais de distrito, os rebeldes das milícias e grupos armados, os senhores da guerra e os traficantes de droga.

Dilacerado desde 1978 pela guerra civil que eclodiu com a revolução marxista e que os Estados Unidos e a Arábia Saudita, através do Paquistão, por um lado, e a União Soviética, por outro lado, subsidiaram, o Afeganistão tem sido varrido ao longo de décadas por uma violência que já produziu milhões de mortos e de refugiados. Desde aí o caos tem vindo sempre a instalar-se, com a emergência de sucessivos grupos armados, entre os quais se destacaram os Taliban, um grupo que se originou a partir da «Assembleia de Cléricos Islâmicos», o quinto maior partido paquistanês e que era responsável pela coordenação e direcção das escolas destinadas aos refugiados afegãos, no Paquistão. Em 1994, e muito antes da eclosão do ISIS, foram os Taliban quem impôs um dos mais ferozes regimes de violência, medo e opressão às mulheres, meninas e raparigas, através da implementação da Sharia ou lei islâmica nas zonas dominadas, e Osama Bin Laden e o movimento Al-Qaeda, responsáveis pelo ataque terrorista às torres gémeas em 2011, foram também longamente protegidos e apoiados por este grupo, no interior do Afeganistão.

Apesar de todos os esforços dos Estados Unidos e das Nações Unidas para derrubar os Taliban e apoiar o desenvolvimento do Afeganistão, os primeiros meses de 2015 foram os mais violentos de qualquer outro período registado. A UNAMA (Missão de Assistência ao Afeganistão das Nações Unidas) registou quase 1600 mortos e mais de 3000 feridos só no primeiro mês de 2015, apenas entre civis. E a violência contra as mulheres, as ameaças, intimidação e ataques de defensores de direitos humanos e activistas têm continuado a perpetrar-se num clima de total impunidade, com o governo sem conseguir investigar os casos que são denunciados, nem trazer os suspeitos a julgamento. Atacados com bombas e granadas, quer por elementos governamentais, quer por grupos armados não governamentais, acossados, ameaçados ou simplesmente assassinados, os defensores dos direitos humanos e em particular as mulheres que participam na vida pública, estão em grande risco no Afeganistão. Foi o caso da Senadora Rohgul Khairzad, que ficou gravemente ferida quando o seu carro foi incendiado e que viu morrer dois filhos de sete anos, enquanto a terceira filha, de onze, ficou paralisada.

Meu querido Extraterrestre, parece que os países nos repetem, em transes hirtos, petrificados, manchados de horror e de sangue e na trama do seu imenso calvário, tremendo, inenarrável, que se apaga no choro e nos gritos silenciados das mães, a história dos homens, essa mesma história que se conta igual a si mesma desde tempos imemoriais. Porque pouco significam os bens materiais para a felicidade dos povos, quando as virtudes da justiça, da equidade, da magnanimidade, da temperança, da verdade e da paz os não acompanham.

Alguns de nós, os que conseguem crer num Deus já estabelecido ou fazer nascer uma nova fé num credo ainda por inventar, esses conseguem segurar-se nos pés e andar de olhos abertos sobre a Terra, por um milagre, por uma coincidência mágica e luminosa ou por uma improbabilidade do equilíbrio, que os deixa de pé, no meio da violência do movimento das galáxias, das estrelas que nascem e morrem e que se devoram umas às outras, mas aos outros, os sem fé e a quem os factos torpedeiam como rajadas de bolas em fogo, a toda a hora, esses lutam por aterrar neste planeta como um alienígena para quem a atmosfera terrestre seja o equivalente ao enxofre.

Não chegam sequer a ser exilados, desterrados. 

Logo à partida, tudo lhes é estrangeiro.