Actos de fé e neo-liberalismo


Caro leitor, como sabe, desde o início deste blogue que defendemos com unhas e dentes a legitimidade da nossa questão, isto é - saber porque é que os extraterrestres não nos contactam.
 
Não queremos recuperar agora todos esses hilariantes argumentos - que em particular foram especialmente úteis para aliviar o mal-estar que nos causa o conhecimento do estado de coisas no mundo, através do absurdo e do riso.

A que mais podemos recorrer em tais situações desesperadas, senão ao humor negro?
 
Mas recordar-se-á decerto que um dos passos mais importantes da nossa argumentação consistiu em pensar porque é que os extraterrestres - fossem eles os seres com potência tecnológica para atravessar as distâncias imensas do cosmos, e, portanto, com alguma sanidade mental associada que lhes tivesse permitido sobreviver a uma tal potência - isto é, porque é os extraterrestres haveriam de partir do príncipio que seria útil ou interessante contactar-nos.
 
E foi na esteira deste raciocínio que decidimos realizar uma descrição do estado de coisas no mundo, no que diz respeito aos comportamentos gerais dos homens que, como se sabe, são, ou económicos, ou políticos.
 
De tempos a tempos, porém, temos de fazer paragens na nossa lista das atrocidades.
 
Alinhar os argumentos. Recuperar do choque. Reflectir.
 
Observamos que todas as atrocidades instituídas têm um factor comum - o dinheiro. Esta é a forma material do poder, no nosso mundo actual. Em tempos esse poder foi, em vez do dinheiro, a terra, o gado, mesmo as mulheres. Agora, o poder está cristalizado no dinheiro, e, por vezes, em meros números. Que se esconde sob a capa dos fanatismos religiosos que sangram o Médio Oriente, senão a conquista do petróleo?
 
Foi por isso que escrevemos: «O mundo, o absurdo, a crueldade e a amante deles (a cobiça).»

Mas é preciso sublinhar que o nosso mundo actual, tal como existe, também é fruto de uma crença.

Isto é, o nosso mundo é o fruto directo da crença na auto-regulação (a prazo) dos fluxos de capitais. 

Trata-se de um acto de fé, exactamente com a mesma margem de erro de qualquer outro acto de fé que transponha da experiência passada uma visão para o futuro.
 
Marx analisou esta «tendência» do capital para se auto-regularizar, através de um movimento próprio que alterna entre as crises e os oásis de progresso e que, de acordo com o acto de fé dos neo-liberalistas, produziria sempre oásis mais duradouros e abrangentes, até ao ponto vitorioso em que estes serviriam de abrigo a toda uma humanidade emancipada.*
 
Mas o primeiro problema do acto de fé que crê na infinita capacidade auto-reguladora dos capitais reside no facto deste movimento ser pensado como movimento potencialmente infinito, ou seja, sem um limite real. Levando às últimas consequências este acto de fé, a consequência mais natural do capitalismo tem de ser a colonização humana das galáxias e do cosmos, e não é impossível que um tal estado de coisas venha a realizar-se.

O que temos, porém, só por hoje, e mesmo por amanhã, é um pequeno planeta com limites, com recursos e territórios limitados e um equilíbrio frágil e precário.

Este planeta grita-nos já com todas as suas palavras não-humanas que é necessário regular a exploração ilimitada dos recursos, que a espécie humana não só ameaça toda a vida do planeta, como se ameaça a si própria de extinção.

Aos membros dos países desenvolvidos, entre os quais me incluo, e para quem a crença no progresso material ilimitado não foi questionada, a esses membros talvez não lhes seja muito cómodo pensar que se a humanidade inteira consumisse na medida dos seus gastos, o necessário seriam três planetas e não apenas um. E não é possível afirmar que o homem tenha poder para triunfar sobre a natureza como um todo, porque o homem depende da natureza.

No estado de coisas actual, é mesmo caso para dizer que teríamos mais orgulho em ser um rato do que um ser-humano, tal é a grosseria com que os seres humanos tratam a delicada natureza.
 
Mas há ainda um outro aspecto igualmente grave, criminoso, um aspecto igualmente trágico e que parece ser curiosamente indiferente ao acto de fé dos neo-liberalistas. É o preço humano das crises económicas que asseguram o progresso do capitalismo, crises essas que devoram ou simplesmente aniquilam o potencial de gerações, de milhões de seres-humanos.
 
É um facto que muito do nosso progresso e bem estar se deve às conquistas materiais do capitalismo. Mas muito do nosso progresso e bem estar se deve também à descoberta da electricidade, da penicilina ou dos conservantes. Muito do nosso progresso e bem estar se deve à ideia de liberdade e direito que foi pensada, criada, explicada e acarinhada por dezenas de filósofos e de escritores, ao longo de séculos. O nosso bem estar e progresso deve-se também às Sonatas de Mozart, à Declaração dos Direitos Humanos e à obra «Para a Paz Perpétua», de Kant. Deve-se à tentativa de execução de um conceito de estado social que foi progressivamente criado ao longo de várias centenas de anos e inclusivamente com o sacrifício da vida de homens de excepcional coragem e visão.

Qualquer pequena criança é capaz de sentir que a música lhe traz paz e conforto. Mas parece haver uma cegueira inerte no acto de fé do neo-liberalismo quando postula que o bem-estar da humanidade depende directamente do seu progresso material, independentemente do sacrifício dos milhares de seres humanos à conta de famigeradas «crises». 

Porque o que se verifica também é que o nosso progresso e bem-estar deve muitíssimo à criatividade e ao potencial de seres-humanos singulares que se afirmaram num máximo das suas possibilidades, num máximo da sua potência.

Neste prisma, cada geração que se perde, cada ser humano que se sacrifica neste acto de fé que é cego, cada uma destas perdas realmente trágicas é uma privação a que todos nos condenamos.

Na verdade, condenamo-nos à privação de um presente e de um futuro tão espantosos que ainda não estão sequer na nossa imaginação, do mesmo modo que nem a penicilina nem a lâmpada estiveram na imaginação dos homens do século IX, na Europa.

Porque haveria alguém de nos contactar, a nós, que enveredámos em massa por um tal caminho de insensatez e de loucura?


 
 
* Karl Marx, O Capital, Vol. I, Capítulo XV «A lei geral da acumulação capitalista».