Porque é que a fotografia de Omran Daqneesh corre o mundo?



Eis os factos.

Desde o final da Segunda Grande Guerra Mundial que não havia tanta gente em busca de refúgio.

Porque é que a fotografia de Omran Daqneesh corre o mundo?

Mais de quatrocentas e setenta mil pessoas morreram na guerra civil da Síria. Destas, cerca de setenta mil morreram devido à falta de mantimentos, cuidados médicos, água limpa ou abrigo. Mas o número de feridos e mutilados chega quase a dois milhões de pessoas.

Porque é que a fotografia de Omran Daqneesh corre o mundo?

Do outro lado da morte, quantos olhos vitrificados agora nos olham a nós que talvez sejamos hoje os falsos vivos?

Haverá terra onde colocar os pés sem ser sobre os corpos enterrados da infâmia, da tortura, da vergonha e da miséria de sermos humanos?

Porque é que a fotografia de Omran Daqneesh corre o mundo?

Será porque está vivo e inteiro o menino imóvel e porque o horror é ainda suportável e se apresenta naquele limite paradoxal em que pode ser olhado?

Seríamos capazes de olhar para Omran Daqneesh se lhe faltasse uma perna, um braço, um pé, um olho, uma mão, uma cabeça, como a tantos, como a tantos, tantos outros?

Porque é que a fotografia de Omran Daqneesh corre o mundo?

A guerra na Síria grita-nos de um modo insuportável como falham as instituições para proteger os direitos daqueles que buscam asilo e para assegurar a aplicação da lei internacional.

Porque é que a fotografia de Omran Daqneesh corre o mundo?

Porque o olhar da pequena criança é como o de um velho que já fez a travessia da morte e do desespero, tantas vezes, mas tantas, tantas, que ficou para lá do desencanto e da dor, para lá da sensibilidade?

Porque o silêncio do seu corpo nos estende aos pés a infinitude do deserto que a sua alma viu e conheceu, e que nós sabemos que existe, e que não podemos esquecer?

Porque é visível, mas tão visível, que a consciência atingiu aquele ponto mais agudo que a faz balançar no extremo do pontão que se abre para a loucura, fazendo oscilar, de um modo tão insuportável quanto injusto, a pequena criança à beira do abismo?

Ou porque a poeira branca que cobre todo o menino, desde os cabelos até aos pezitos nus, é tão irreal que nos fala de um outro mundo, fala-nos de um caos impossível como que de fantasmas e de ruínas que habitam só um remanescente, um pequeno resto remanescente da nossa realidade?

PORQUE É QUE A FOTOGRAFIA DE OMRAN DAQNEESH CORRE O MUNDO?

Porque o banco moderno e cor-de-laranja da ambulância está tão limpo e tão novo como as paredes costumeiras do nosso confortável quotidiano e não se percebe como se acolheu nele o pequeno menino transfigurado, este pedaço imóvel do caos, este disparo vivo de um gémeo e alucinado desespero?

Teremos o direito de olhar para ele, para o pequeno e inocente Omran Daqneesh?

Se todos os homens e mulheres se ajoelhassem ou soçobrassem de mãos unidas junto ao peito em nome dos mortos absurdos e da dor ignóbil e da vergonha e do sangue e da carne desmembrada que a guerra infamemente produz já não haveria mãos que sobrassem para lançar bombas sobre os inocentes desta terra através dos céus.


Omran Daqneesh, Aleppo, 17 de Agosto de 2016