Entre a civilização e a barbárie


O que é a civilização? - perguntará o extraterrestre. Eu, na minha humilde posição de ser humano, um ser humano que se sente despido e sem escudo, no meio do infinito, eu, meu caro e prezado extraterrestre, dir-lhe-ia que a civilização é a paz - e que a civilização é a consciência em acto. Aliás, a justiça em acto. E eu que tive o privilégio de conhecer a paz e de caminhar sozinho no meio da cidade sem medo, dir-lhe-ei o quê? Que a civilização procede pela abdicação do cego egoísmo, a favor de uma proliferação de singularidades? Que é como um campo de flores, uma extensa pradaria, um plano povoado de infinitas diferenças? Que só pela medida da força física do trabalho, de um trabalho mais eficaz, mais rápido, mais valioso, o homem não tem o direito da violência e do domínio sobre a mulher, como acontece por tanto mundo? E que, pela insignificância das suas forças, os velhos, os pobres e as crianças não hão-de ficar para sempre sem voz? Uma consciência em acto não pode ficar indiferente à desigualdade nem regozijar-se à sombra dos lucros que foram esfolados da pele dos pobres, arrancados pela lei do mais forte da força de trabalho dos pobres. Uma consciência em acto não aceita o consolo das falácias que nos prometem os bons futuros a troco dos presentes amargurados, como acontece nas políticas ordo-liberais que hoje governam o mundo. Porque é na paz e na justiça, na paz e na justiça possíveis, exequíveis, já experimentadas, que nos é devolvida a humanidade e que somos salvos do medo ancestral e animal com que nascemos e que nos corrói desde o princípio da alma até à medula dos ossos. Podemos caminhar a céu aberto, podemos falar sem receio e os nossos corpos não conhecem a fome e muito menos a pancada ou a mutilação. 

De onde vieram os comboios de Auchwitz? Quem conduzia os comboios de Auchwitz? Quem montou as peças e os parafusos dos comboios de Auchwitz? Quem foram esses que, anónimos, ataram os atacadores e depois foram empilhar os cadáveres nus dos judeus gazeados? De onde vêm as bombas que caiem sobre os civis inocentes da Síria? De quem são as mãos que as preparam, que as embalam, que as empilham? Quem são esses que por cem libras vão buscar uma menina Yesidi aos mercados, para lhes servir de escrava sexual, e que guardam o dinheiro no bolso, como qualquer um, depois de tomar o pequeno almoço? De onde vêm os homens que deitam fogo às filhas no Paquistão? E os tiranos de olhos fixos no ouro e no poder? E os chefes que condenam os povos ao fogo e à fome? De onde vem o lucro, a futilidade e a irrelevância? Essa anestesia da consciência?

Com que álcoois? Com que drogas?

Entre a civilização e a barbárie não cabe uma folha de papel celofane ao alto.




Henri Michaux, Sem Título, 1962