A República Democrática do Congo


Vamos falar de um país que tem quase setenta milhões de pessoas, um dos maiores países do continente africano, a noroeste de Angola. 

Sim, vamos falar do caso extremo do que se passa hoje, diariamente, na República Democrática do Congo, e vamos falar do que está a acontecer agora mesmo, hoje mesmo, caro leitor, enquanto você lê ou passa os olhos por estas linhas.

Apesar de ser um dos países mais ricos do mundo em termos de recursos naturais, um país rico em diamantes, ouro, minérios, extensão, biodiversidade, terras, pessoas e florestas, a República Democrática do Congo é hoje um dos países mais pobres do mundo.

Depois de sangrado pela coroa belga e vampirizado pelo colonialismo europeu, o país ficou durante três décadas debaixo da enorme pata dourada de Mobutu, um órfão sanguinário que se auto-nomeou Mobutu Sese Seko Nkuku Wa Za Banga, ou, segundo uma das possíveis traduções: "O guerreiro todo-poderoso que, devido à sua resistência e vontade inflexível, caminha de conquista em conquista, deixando atrás de si um rasto de fogo".

Este gigante brutal acumulou em duas décadas e meia uma fortuna incalculável, protegida em bancos suíços, uma tal fortuna pessoal que em 1984 ascendia simplesmente ao valor da dívida externa total do Congo/Zaire.

Hoje, a República Democrática do Congo acumula vinte anos de guerra civil e os mortos e desaparecidos ascendem a mais de seis milhões de pessoas. 

São seis milhões que contabilizam os mortos e os ausentes... Não estamos a falar dos feridos, dos torturados, dos aterrorizados e dos violados... É a guerra mais terrível desde a Segunda Guerra Mundial.

Desde 2004 que o Tribunal Penal Internacional investiga a República Democrática do Congo, tendo condenado Thomas Lubanga Dyilo e Germain Katanga por crimes contra a humanidade, isto é, por saque, escravidão sexual, estupro, assassinato, destruição de propriedade e utilização de crianças em guerra.

Mas os massacres e as violações continuam entre as tribos inimigas dos tutsis e dos hutus baniamulenges, cujo ódio ancestral a miséria, a fome e a violência cada vez mais instigam.

Aí, a violação colectiva e a mutilação genital feminina são as armas de guerra que em cada um dos nossos dias fazem dezenas de vítimas, criando milhares ou milhões de mulheres e meninas mutiladas, todos os anos. Não há estatísticas para estes números, porque a vergonha faz esconder as vítimas. E como as mulheres, aqui como um pouco por todo o mundo, tantas vezes mais não são que propriedades que se trocam entre as famílias e que transitam de mão em mão como cabeças de gado ou rebanhos de vacas e ovelhas, violar as senhoras, as raparigas, as meninas e até as crianças de colo das famílias rivais em frente dos donos da casa e de toda a aldeia não significa mais que destruir uma sementeira, queimar um campo de trigo ou desmantelar uma casa até ao pó.

Assim se exerce a humilhação mútua e assim se faz a guerra.

Dizem as estatísticas deste moderno holocausto que um entre cada três homens participou activamente pelo menos uma vez na sua vida numa destas violações colectivas em que todos usam, não apenas o ódio e a força dos corpos, mas paus, machetes, espingardas, fogo, ácido sulfúrico e outras armas para mutilar e degradar para sempre essas meninas e mulheres, tornando-as inférteis.

Por todo o lado neste país um destes guerreiros é um amigo, um primo, um irmão, um filho, um pai, um servidor ou um chefe.

Alastra como uma peste a dor, a ignomínia, a violência, a mutilação e a vergonha entre as gentes num país onde para sempre se queimam e ardem as almas, enquanto o ocidente, o ocidente com as suas democracias, a sua abundância e a sua defesa dos direitos humanos, o ocidente, é verdade, que pela mão do FMI perdoa ao país noventa por cento da sua dívida externa e que envia dispendiosas operações da ONU que tentam tratar a malária, o sarampo, a cólera, a desnutrição, as infecções e os traumas, mas que não consegue travar o extermínio em massa deste povo, o ocidente que atribui a Denis Mukwege o prémio Sakharov, o grande prémio da União Europeia para os Direitos Humanos, distinguindo o médico ginecologista que com risco de vida edifica e mantém no leste do país um hospital onde se reconstróiem os corpos dessas mulheres mutiladas e onde se encontra alguma justiça para o sofrimento, o ocidente parece que nada mais faz.

Meu querido leitor extraterrestre... Meu Deus!... Como se alguém pudesse estender um pedaço da alma humana, um pedaço da compaixão humana, numa inócua bandeja de prata!...

Como podemos continuar a viver inteiros sabendo que hoje mesmo a violência arde e grassa deste modo nas casas deste planeta? 

Como podemos nós, as testemunhas silenciosas dos crimes, os imóveis que sabem mas que não se mexem, os mudos que ouviram mas que não falam, todos estes que têm os olhos bem fechados e a consciência adormecida com o que quer que haja por aí à mão de tóxico ou de tranquilizante, nós os que temos a alma desfeita em mil pedaços de tanto saber e nada poder, como podemos continuar a existir num tal planeta? 

Pomos um pouco de rímel nas pestanas, barbeamos as caras de manhã e andamos com a vidinha para a frente?

Choram e gritam as crianças violadas no rés-do-chão ou nas caves da casa em que vivemos, enquanto nós os felizes lavamos os dentes no décimo nono andar.

Os nossos corações ou os de quem ainda possui um tal órgão para a compaixão ficam desfeitos nos farrapos que lavamos nas nossas modernas máquinas de lavar e que depois estendemos nas cordas ao sol, à espera que sequem.

Lá os vestimos outra vez, estes corações um pouco menos encardidos pelo sangue e pelas lágrimas destas imensas multidões que todos os dias sangram e choram, os nossos corações oprimidos, sujos e salgados desse choro que choramos em vão por elas, e estes toscos corações que ainda agora remendámos, para que possam continuar a bater no interior dos nossos peitos, estes corações lívidos e cada vez mais duros e estragados de tanto que os lavamos e secamos ao sol, talvez um dia eles mesmos nos caiam do alto em cima das cabeças como enormes pedregulhos e nos deixem estatelados no chão da nossa cultivada inconsciência.

Píiiiiiiiiiiíiiiiiiiíiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!!!!!!!!!!.....

Talvez soe por fim o alarme deste último round que foi a nossa oportunidade para criar uma pequena diferença nas vidas e nos levem em braços para nos enterrarem no chão de uma vez por todas.