O casamento - ou a violação legal das meninas no Novo Sudão


 
Meu caro e querido leitor não-humano, continuemos então esta tarefa de desfiar o mundo, apesar da enorme dor que ela nos traz.

Como decerto sabe, um dos países mais pobres e corruptos deste planeta é o Sudão.
 
Atravessado pelo rio Nilo, banhado pelo Mar Vermelho, o Sudão é o terceiro maior país africano e faz fronteira com o Egipto, a norte, e com a Arábia Saudita, a leste.
 
O seu solo é rico em petróleo, gás natural, ouro, prata, crómio, asbesto, manganês, gipsita, mica, zinco, ferro, chumbo, urânio, cobre, cobalto, granito, níquel e alumínio, mas mais de um quinto da sua imensa população vive abaixo da linha de pobreza e, apesar da enorme riqueza do solo, o seu povo é o quinto mais faminto do mundo.

Sugado até ao tutano pela coroa inglesa, exaurido por duas guerras civis que se prolongaram por mais de quarenta anos, explorado economicamente nos dias de hoje por países como a França e a China, continuamente assolado por conflitos étnicos e duramente asfixiado por um ditador que sublimou essa velha e rude humilhação de escravo na potência de um rei-sanguinário, o presidente Omar al-Bashir, este povo vive sob a sharia, a lei islâmica que continua a violar as mais elementares proibições internacionais no que diz respeito a castigos cruéis, degradantes e desumanos.

É contra as raparigas e mulheres que as punições são aplicadas de um modo mais violento, em particular no que diz respeito a «crimes» que se relacionem com a maneira de vestir, a sexualidade e as crenças privadas, e foi no Novo sudão que Meriam Ibrahim, salva pela enorme pressão internacional, deu à luz no corredor da morte e na prisão amamentou durante dois anos o seu bebé, depois de condenada à forca e a cem chicotadas pelo crime de adultério e «apostasia», isto é, por ter casado com um cristão, uma vez que o casamento de muçulmanos com cristãos não é reconhecido pela lei vigente.

Desde o golpe militar de 1989 que Omar al-Bashir suprimiu todos os partidos políticos, dissolveu o Parlamento e se converteu em Director do Conselho Revolucionário para a Salvação Nacional, tendo cometido a proeza mundial de ser o primeiro Chefe de Estado em exercício a ser alvo de um mandato internacional de captura, pelo terrível conflito genocida em Darfur, cuja história total está por contar, cujos números completos estão por apurar.

O Novo Sudão, ou Sudão sul, essencialmente rico em petróleo, declarou-se independente em 2011, e é também um dos países mais pobres do mundo, apesar da riqueza do solo. Apenas vinte e sete por cento da população acima dos quinze anos sabe ler e escrever, sendo que entre as mulheres este número se reduz a metade. Apenas quinze por cento das mulheres acima dos quinze anos sabe ler e escrever, ou sequer contar. É difícil encontrar água e alimentos, e o sistema de saúde é conhecido como um dos piores do mundo, com elevadas taxas de mortalidade infantil.

É nesta paisagem do inferno que a lei permite o casamento de meninas a partir dos doze anos com homens que as paguem ou que as possam sustentar, libertando as suas famílias de origem do fardo de as alimentar e educar.

Akech, por exemplo, era uma menina que gostava de estudar e cujo sonho era ser enfermeira. Quando completou catorze anos, porém, o tio que a criava obrigou-a a deixar a escola para se casar com um homem mais velho e já casado com outra mulher, que pagou setenta e cinco vacas por ela.

«As meninas nascem para que a gente possa comer.» - Disse-lhe o tio. - «Tudo o que eu quero é receber o meu dote.»

Por duas vezes Akech fugiu e por duas vezes os primos e o tio a foram buscar e lhe bateram. Da última vez, levaram-na para a prisão e bateram-lhe tanto que Akech não podia andar, e Akech resignou-se.

No Sudão Sul quase metade das raparigas entre os quinze e os dezanove anos está casada e muitas têm apenas doze anos quando são obrigadas a casar. A organização Human Rights Watch documentou casos de raparigas cruelmente golpeadas, humilhadas verbalmente e ameaçadas de maldições, ou levadas para a polícia como no caso de Akech. Muitas foram mantidas em cativeiro e mortas pelas suas próprias famílias.

Você, meu querido leitor inumano, você com certeza chora de espanto e de tristeza porque você, tal como eu, você conhece as meninas e as crianças e já olhou muitas vezes para dentro dos seus olhos transparentes. Você sabe que uma criança e uma menina não é para ser trocada por vacas, nem por cabras, nem por notas ou por outros presentes, e você sabe que as meninas não são mercadorias, e que a humanidade não se divide em dois.

Mas esta é que é a nossa humanidade.