A carnificina em nome de Deus


Meu caro e cada vez mais estimado leitor sobrevivente, que resiste corajosamente ao paradoxo, à exposição da crueldade, ao infinito e, quem sabe, à loucura.
 
Bem sei que não pode continuar a sentir-se humano, depois de contemplar a paisagem apocalíptica que é a do nosso mundo actual.
 
Terrestre, sim. Mas humano, não.
 
De modo que vou chamar-lhe «leitor não-humano».
 
Sendo assim, meu querido leitor não-humano, é necessário confessar-lhe que precisamos de si como de pão para a boca e como de sal para as almas.
 
Você na sua desumanidade não percebe como se mata por ambição, poder, dinheiro ou terras e bens que simplesmente contam mais do que as vidas.
 
E você também não percebe como o sofrimento infligido pode trazer satisfação ao algoz. 
 
Você que não é humano não percebe a indiferença dos comodistas e dos inconscientes que assistem confortáveis nos seus sofás às fomes e às chacinas que vêem na televisão, sem verter uma única lágrima, enquanto comem batatas fritas.
 
E você também não pode perceber que os seres humanos não matem apenas por vingança ou por cobiça de diamantes e de outros bens. 
 
Você sente-se no limite de todo o entendimento possível quando vê que os humanos (pelo menos segundo dizem os que perpetram tais crimes) também matam por Deus.
 
Mas dizer «matar» é dizer muito pouco.
 
Decepam, decapitam, queimam, torturam, dizimam em nome de Deus.

Já no século XI, na Europa, o Papa Urbano II pregava que todos os que morressem em combate contra os pagãos iriam merecer a salvação, franquear as portas do Reino de Deus e habitar eternamente o paraíso.

Em 1099, segundo Guilherme de Tiro Jerusalém ficou de tal modo inundada de lágrimas, gritos e sangue que a carnificina até aos conquistadores causou desgosto e nojo, em vez da alegria da vitória.

Eram as Cruzadas. E em nome de Cristo se incendiavam casas, saqueavam cidades e passavam pelo fio da espada as cabeças dos infiéis.

Mesmo dentro de portas, no interior da Europa, a carnificina prosseguia, em pleno Renascimento.

Ateava-se fogo às bruxas em praça pública, e assim morriam as mulheres às centenas e aos milhares.

Tratavam-se os hereges e os judeus com a tortura do Potro, da Roda, do Pêndulo e da Água, e criavam-se, uma após outra, engenhosas máquinas de fazer sofrer.

Nicolas Eymerich escreveu, para ilustração e aperfeiçoamento das técnicas de inquisição, o Directorium Inquisitorum, que foi reimpresso várias vezes, ao longo de mais de cem anos, e que inspirou também o Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas).

«Ah!...» Você me dirá. «Mas isso foi antes da Declaração dos Direitos Humanos, antes do Holocausto, antes da elevada e revolucionária consciência que nos ensinou que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo!...»

E você me dirá ainda, meu querido e ansiado leitor não-humano: «Isso foi antes de percebermos que o desconhecimento e o desprezo pelos direitos do homem conduziram a actos de barbárie que revoltam a consciência da humanidade.»

Mas qual consciência?

De qual humanidade?

«Isso foi antes de ser proclamado como a mais alta inspiração do homem o advento de um mundo em que os seres humanos fossem livres de falar e de crer, libertos do terror e da miséria!...»

Gritará então você com plenos pulmões, meu querido leitor não-humano.

Mas não. Nada disto foi antes. Tudo isto é agora.

Foi neste mesmo ano corrente e não há mil ou quinhentos anos atrás que um jihadista britânico sugestivamente chamado Al-Britani apresentou on-line um anúncio para recrutar profissionais para o Estado Islâmico - agora, hoje, neste planeta.

Precisam de gente como assessores de imprensa, médicos, cozinheiros, mecânicos, personal trainers, guardas prisionais, professores, polícias que verifiquem se as mulheres estão vestidas correctamente e precisam ainda e especialmente de bombistas, cuja função é descrita como a «mais linda».

«Os irmãos no departamento que desenvolve as bombas são o coração e o esqueleto de todas as operações... Imagine a recompensa que é preparar um carro cheio de explosivos para que outro irmão os detone nas linhas do inimigo... Você terá a mesma recompensa que teria o irmão que carrega no botão e manda cinquenta infiéis para o Inferno!...»

Que ecstasy, poder matar, violar e torturar em nome de Deus e trazer para o plano da santidade e da virtude os delinquentes e os criminosos violentos que passam a ser coroados num tal paraíso!... 

Você sabe que não bastou destruir às marteladas os baixos relevos e as estátuas milenares de Nimroud.

Foi preciso fazer explodir integralmente a cidade e apagá-la totalmente da terra, reduzida a pó e a nada.

Graças aos filmes por si mesmo gravados é possível vê-los a derrubar esculturas de corpos humanos e cabeças de animais alados com martelos pneumáticos e picaretas, ao som de cânticos, e, tal como se arrancassem as vestes de velhos, de crianças, de mulheres ou de meninas, vêmo-los arrancar as protecções de plástico das estátuas milenares, como se estas não valessem nada.

Com bulldozers, Hatra de dois mil e trezentos anos é arrasada.

Mas não lhes basta fazer cair as estátuas e deixá-las desfeitas em mil pedaços.

É preciso fazê-lo com um ódio máximo e continuar a bater nas pedras até que se reduzam a pó, até que sangrem.
 
Meu querido leitor, meu bom amigo não-humano que escondes o rosto nas mãos e que porventura choras, tu sabes bem como somos todos nós que sangramos e cambaleamos neste deserto da loucura e do terror e que ainda assim todos os dias continuamos a preparar a mesa para o almoço, mesmo depois de saber como agora se queimam homens dentro de jaulas e como as meninas Yezidi se atiraram das montanhas Sinjar, no Iraque.
 
A sopa, o pão, a carne ou o peixe estão nos pratos a olhar para nós.
 
Mas é verdade que é cada vez mais pequeno o estômago que nos permite engolir uma tal refeição.
 
E há-de chegar o dia em que a refeição nos engolirá a nós, graciosamente.