O extraterrestre segundo Espinosa


Retomemos, então, o fio à meada.

Aceitemos que o espaço e o tempo sejam as «formas» da realidade numa experiência humana.

Como será um extraterrestre que não possua a experiência do tempo, isto é, uma experiência do tempo tal como nós, os humanos, a possuimos?

Concerteza será um extraterrestre imóvel e imortal, em corpo e em pensamento. 

Corpo imóvel, eterno e incorruptível - pensamento petrificado: um extraterrestre que certamente não viajará até nós, humanos.

Pelo contrário, aquilo que é mais essencial na nossa experiência consiste no facto de nascermos, vivermos e percebermos que vamos morrer. A minha morte é o limite da minha experiência, pois não faço a mínima do que seja isso: morrer.

Você sabe o que é morrer?

O que é que acontece aos outros quando se imobilizam e esfriam os corpos, quando as forças se vão e o ar já não os atravessa?

Nunca ninguém me veio falar dessa morte que lhe aconteceu viver.

Você sabe o que acontecerá a cada uma das nossas almas, depois de morrermos?

Será que elas atravessam o rio do esquecimento na grande barca das almas peregrinas, em direcção ao eterno olvido e à branca paz?

Ou vão por uma Via Láctea da saudade, pela mão de quem um dia as tenha amado, com os pés descalços entre o pó das estrelas?

Ardem na chama dolorosa do remorso com a consciência súbita, mas em vida sempre adiada, da sua própria maldade?

Ou revivem no Inferno e na pele a crueldade e a angústia que acaso tenham infligido aos outros?

Serão outra vez brandidas como bolas na tômbola de um jogo de sorte, agitadas como berlindes num tabuleiro de azar, para virem de novo à vida numa tentativa de finalmente existir, de encontrar uma existência em pleno?

Ou progredirão de patamar em patamar pela via arriscada e dolorosa da sua íntima superação, avançando ou recuando conforme a coragem ou cobardia, ao sabor do acaso e da fortuna?

Que coisas mais nos faltará ainda imaginar, de onde nos virá a inspiração?

É que o «tempo» parece não ser mais do que esta experiência básica e paradoxal da finitude, esta incrível consciência de um limite, como quem bate com a cabeça num muro, às cegas, no meio da escuridão. 

Pois, como poderei imaginar uma experiência sem tempo, ou uma vida sem extensão?

Sem espaço nem tempo, como poderei captar o movimento, a evolução e a transformação dos corpos e das coisas?

Pelo contrário, ao invés da experiência física do tempo, o infinito não é o tempo experimentado. 

A eternidade é sempre um tempo pensado, imaginado. 

Não há infinito no «aqui» e no «agora», a não ser que eu transforme o «aqui» e «agora» em segmentos de recta e decida dividi-los infinitamente. 

O que há é sempre um número depois do outro número, sempre um número entre um número e o outro número, sempre um corpo rodeado por outro corpo, uma coisa dentro de outra coisa, um espaço maior em torno do espaço menor, porque a eternidade no tempo parece ser como uma transposição do infinito do espaço para o tempo, ou um cruzamento entre a experiência do espaço e a experiência do tempo. 

Dificilmente imagino a minha própria eternidade, ou pelo menos a eternidade da minha alma naquele conjunto indissolúvel com o corpo da sua juventude, mas como é que poderei imaginar uma coisa que não esteja em lugar algum? 

O infinito traz-me a medida da minha própria insignificância e, porventura, a indiferença à virtude, mas, sem o infinito, por onde poderei escapar?

Sem o infinito, como saberei onde estou, ou onde ponho realmente os pés?

Por isso é que a solução de Espinosa me parece a mais perfeita de todas.

Segundo Espinosa, mesmo um extraterrestre imortal não será mais do que uma das infinitas essências singulares de uma substância infinita a que por vezes chamamos cosmos, e que, como um poliedro de mil triliões de lados ou de infinitos aspectos, gira com as fulgurações intermitentes dos seus infinitos atributos, sempre truncados para os olhos dos vivos, mas inteiros e infindáveis em si mesmos. 

Porque o espaço e o tempo passam a ser então apenas uma entre as infinitas faces de todas as coisas que mergulham o seu corpo na luminosa escuridão do insensível, ou do virtual, tal como um iceberg que ergue aos céus a faiscante crista branca mas que esconde sob as águas insondáveis a extensão maior da sua alma e as forças que o conduzem pela deriva do mar.

E é por causa também de Espinosa que me sinto mais extraterrestre do que humano, meu querido e desejado leitor extraterrestre, a quem a partir de agora me dirijo, na esperança de que você um dia possa decifrar o significado destas letras, navegar na internet e deslindar sem qualquer dificuldade a complicada gramática do português.

Nunca poderei entender este mundo onde todos os seres não se encaminham para a alegria, este mundo em que, à revelia de todos os discursos santificados e virtuosos que entretanto se produzem, muitos factos em cascata mostram como a indiferença, o poder, o dinheiro e os bens simplesmente contam mais do que as vidas.