Forças cujos êmbolos funcionam fora das vontades

 
A humanidade faz passar de mão em mão, de geração em geração, de povo em povo, de gente em gente, de história em história, o fardo amargo da miséria e da infelicidade, num movimento cuja máquina parece obedecer, de forma cega e aritmética, a forças cujos êmbolos funcionam fora das vontades.
 
Está por compreender e por travar o movimento desta máquina infernal ou deste monstro sombrio e subterrâneo que decanta a frustração em violência, o ciúme em crime, o desejo em homicídio, a passagem pela dor insuportável na perfeita surdez a qualquer  dor, a miséria na concupiscência, a inveja em destruição, a impotência em vingança e a humilhação na ferocidade.
 
Está por compreender e por descrever em verdadeiras linhas de água essa tremenda máquina de somar do inferno em que o desejo ganha o corpo de um heroinómano  a quem a dose de prazer anterior tem de ser sempre acrescentada para poder passar à sensibilidade, isto é, ao facto.
 
Porque é nesta humanidade que encontramos as prodigiosas máquinas de somar dos gordos, dos jogadores, dos «apaixonados», dos conquistadores imparáveis, dos mafiosos, dos perfeitos virtuosos,  dos drogados, dos alcoólicos, dos trabalhadores incansáveis, dos criminosos, dos bondosos e dos capitais.
 
Como é que, na senda para o inferno e na escadaria descendente das fraquezas, da violência, da vaidade, da riqueza, da dor ou do vício, a sensibilidade se insensibiliza e o corpo e a alma começam a fechar as suas portas, escurecendo como vãos de escada, fossilizando como mortos-vivos, envelhecendo para dentro como fruta que apodrece e decaindo até ao nojo como o ar irrespirável de uma sombria casa abandonada?
 
Como é que o coração pode deixar de sentir - tal como as pernas deixam de andar, quando ficam paradas -, e como é que a alma pode deixar de ouvir - tal como o ouvido fica surdo, quando não é desperto -, e a cabeça deixar de pensar - tal como a gangrena que tem por destino progredir até à morte, até ao deserto?
 
Sobre as tábuas do chão dessa casa vazia e decadente correm às cegas os ratos e as baratas de um desejo mecânico a quem roubaram os olhos, os ouvidos, o coração e a alma e que anda como andam as pernas de um animal a quem tenham cortado a cabeça - correndo num estéril esforço de morte, numa última alucinação.
 
Meu caro extraterrestre, meu querido leitor não-humano, você, que porventura nos observa, não gostaria de escrever um pequeno tratado, um breve opúsculo que nos explicasse, a nós e aos prisioneiros e reféns de um tal mundo, a real e verdadeira mecânica humana dos afectos?
 
Teríamos então uma bela profilaxia da desumanidade.