Tráfico humano I


Meu caro leitor sobrevivente, foragido, extraterrestre, perplexo, morto, vivo ou ainda por nascer, você sabe que existe neste planeta um amplo mercado negro em que se vendem as jovens mulheres e as meninas, vendem-se as crianças pobres e indesejadas e assim se infiltram um pouco por todo o nosso mundo, nos becos miseráveis da imigração ilegal, nas casas de passe e nos meandros trágicos e tortuosos da pornografia infantil, a vergonha e a degradação extrema que vêm de tratarmos os seres humanos como coisas de comércio.
 
Porque o tráfico de pessoas continua a ser uma das formas de comércio ilegal mais lucrativa no mercado mundial e calcula-se que movimente por ano cerca de quarenta e quatro bilhões de dólares.

Porém, aquilo em que você porventura não perderá muito tempo a reflectir, meu caro leitor terrestre, pacífico, satisfeito, instalado, acomodado ou tranquilo, é como muitos entre nós trocam o tempo de vida por dinheiro ou por trocos, para garantir o pão, o tecto, a roupa ou um resto de dignidade.

«Nada há de mais característico que a distinção entre os operários que trabalham durante todo o dia e os que trabalham só meio dia, à semelhança das crianças menores de treze anos que não devem trabalhar mais de seis horas por dia. Em inglês são representados, os primeiros, por full time (tempo completo); os segundos por half time (meio tempo). O trabalhador, assim classificado, não é mais do que uma personificação do tempo.» (1)
 
Também há quem receba em troco desse tempo de vida tão pouco que não chega para ter uma «vida», isto é, não chega para mais do que trabalhar para comer e dormir. Chama-se a isso, eufemisticamente, «exploração», ou, se retirarmos o eufemismo, «escravidão».
 
Em 1803, foi pela primeira vez proibido o comércio de escravos no mundo, pela Dinamarca.

«Apenas nos contemplam dois séculos de compaixão.» Afirmará você, perplexo diante dos antigos preceitos que justificavam o comércio dos corpos com a ideia de que estes não teriam alma.

Seguiu-se o Reino Unido, em 1807, os Estados Unidos, em 1808, e o Brasil, em 1831.

A Mauritânia foi o último país a extinguir a escravidão por lei, só em 1981, há menos de trinta e cinco anos. 

«Que lenta que é a marcha humana para a dignidade!...» Exclamará você, meu querido leitor exausto.

Estima-se porém que existam ainda pelo menos vinte e sete milhões de escravos no mundo, fora todos aqueles a quem a pobreza obriga a um salário miserável no lugar do grilhão e do chicote, em nome do medo e da fome, fora todas essas populações de países inteiros que, vítimas de crises financeiras, bancárias ou de estado, se vêem forçadas a prescindir de remunerações, a acrescentar horas ao seu horário de trabalho semanal e a entregar ao estado sob a forma de imposto ou taxas alguns meses desse horário inflacionado que se destinava à subsistência, cativas, como trabalhadores forçados ou prostitutas, de uma dívida que lhes foi peremptória e absurdamente colocada sobre as cabeças.

Porque o trabalho forçado sempre existiu e foi imposto ao longo de todos estes séculos, em especial aos prisioneiros de guerra e às populações subjugadas em guerras que também são negócios, populações intensamente desprezadas pelo ódio e oprimidas pela vingança dos povos vencedores.

Na Alemanha Nazi, o trabalho forçado nos campos de concentração fez lucrar empresas como a Siemens, a Volkswagen, a BMW, a Bayer ou o Deutsche Bank, entre outras. Nos campos Gulag, na União Soviética, na «Ferrovia da Morte», na Birmânia, durante a guerra do Pacífico, no «trabalho de compensação» que foi imposto pelos Aliados a mais de 4.000.000 prisioneiros de guerra alemães, a escravatura moderna do século XX continuou a ceifar e a consumir as vidas, em troco do lucro.

O trabalho morto, a que tantos preferem chamar «capital» (pois sempre é um nome mais abstracto e delicado), essas forças de trabalho mortas e convertidas em dinheiro sugam vorazmente as forças do trabalho vivo como um ancestral vampiro sempre sequioso de um novo sangue para a sua velha e repelente carcaça.
 
Ele é como um autómato, velha carcaça do desejo sem alma que precisa sempre de mais e mais e mais para se manter de pé e as suas forças são como um cancro, um fluxo de voracidade mortal que é monstruoso e imparável e que ambiciona sempre o fútil e o inútil (as rendas, os casacos, os véus ou as marcas) em sacrifício do que é mais sagrado e intocável, a imprevisível vida humana, e assim floresce o comércio subtil e obsceno dos que trocam a alma por ouro, a verdade pelas aparências e o coração por quinquilharias.

Veja as palavras de M. Otley, director de uma fábrica de tapeçarias em Borough, no século XIX, em Inglaterra:

«Uma lei que nos concedesse horas de trabalho das seis da manhã às nove da noite seria muito do nosso gosto; mas as horas do Factory Act, das seis da manhã às seis da tarde, não nos convêm. Paramos a máquina durante o almoço. Quanto à perda de papel e de cores ocasionada por esta paragem, nem vale a pena falar nisso.» (2)
 
E ainda hoje, sem remédio, são muitos os que trocam a consciência pelo conforto.
 
Você bem poderá até dizer, de um homem de sucesso: «Teve uma vida boa.»

Trabalhador incansável, homem de carreira reconhecida, proprietário de numerosos bens e possuidor de diversos automóveis, ao longo da sua vida, é possível que a sua alma não tivesse muitos outros projectos, para além do conforto social e material.

Este homem morre, como todos os outros.

Viria com o desejo de se martelar num outro fogo, compor numa outra efígie, viajar por outras estepes?
 
Que será de nós, enquanto se venderem e trocarem por dinheiro e por bens os corpos, as vidas e as forças?
 
Objectos estrangeiros a nós mesmos, desconhecidos das nossas almas autênticas e dos nossos desejos mais reais e absolutos, como poderemos ser mais que vagabundos e
sem-abrigo, farrapos ou sombras errantes sobre a triste arena do mundo?
 
Porque muito do que hoje temos neste mundo actual se resume ainda a um comércio criminoso, tantas vezes bárbaro, e outras simplesmente subtil - ou discreto.

 
Rapaz de dez anos numa fábrica de alumínio em Bangladesh (3)




(1) Karl Marx, O Capital, Vol. I, Capítulo X-II, «O capital faminto de sobretrabalho. Boiardo e fabricante.»
(2) idem, Capítulo X-III, «O dia de trabalho nos ramos industriais ingleses em que a exploração não é limitada por lei.»
(3) http://thecoveringhouse.org/act-challenge-modern-slavery-an-overview/