Nós os humanos 2...



Meu querido Extraterrestre,

Entre nós os humanos é Karl Marx quem pergunta, em 1867, o que é um dia de trabalho.

E o que é um dia de trabalho, meu querido Extraterrestre?

Será que a si lhe sobra, depois de cumpridas todas as suas obrigações, depois de se lavar, depois de comer, depois de dormir todas aquelas horas que são essenciais para se pôr outra vez em andamento, será que a si lhe sobra, como reclamou Marx, tempo para a instrução, para pensar, para apanhar sol e para passear ao ar livre, para realizar funções sociais, familiares, comunitárias, altruístas ou de amizade, tempo para o livre jogo das forças físicas e intelectuais?

Que não se esgotem as suas forças, meu querido Extraterrestre!

Que as suas forças lhe permitam voar até nós, que estamos reféns de um sistema que nos devora, ou que se auto-devora!

Não andará você a roubar horas ao sono ou a viver como um eremita, só para conseguir trabalhar e cumprir fragmentos, ou melhor, pedaços, de um sonho?

Será que a si também lhe é fornecido alimento como quem fornece carvão a um forno ou óleo e lubrificante a uma máquina?

Talvez vocês tenham dias de quarenta horas, no vosso sistema solar, e horas de sono reduzidas a pouco, como os presidentes da república, quem sabe?

Talvez vocês não tenham, nem um sistema neurológico, nem um sistema digestivo!

Talvez vocês não precisem nem de se lavar nem de comer, e sejam mais como fogos-fátuos!

Vocês sim é que hão-de ser os trabalhadores perfeitos, quando chegarem ao nosso planeta!

Quem sabe?

O capital enamorar-se-à de tal modo pelas novas forças de trabalho extraterrestres que conduzirá os humanos em hordas para os fornos de um novo Auchwitz ou então simplesmente taxá-los-á com impostos tremendos, asfixiantes, devoradores e insustentáveis, impostos para os humanos porque trabalham, porque circulam, porque bebem água, porque acendem a luz, porque compram gasolina, porque comem uma pastilha elástica ou simplesmente porque existem (não se admire, porque muito em breve será criado um novo imposto sobre a existência tanto singular, como colectiva, e que virá a ser comummente conhecido como IES e IEC), ficando então o capital enamorado pelas novas forças de trabalho extraterrestres e com todos os dentes de ouro dos humanos guardados em cofres e todos os bens desses restos inúteis da espécie consubstanciados em notas de crédito e taxas de juro que depois serão totalmente inúteis para os novos fogos-fátuos que não hão-de precisar de nenhum dos nossos produtos, porque afinal os novos fogos-fátuos não têm, nem sistema neurológico, nem sistema digestivo (mas quanto a isso só se pensará depois, caso haja ainda algum sistema neurológico remanescente, o que não é provável), e então será o ómega, o infinito, o novo Big-Bang, o erzatz ou o apocalipse ultra-cómico de uma tal cobiça voraz pela mais-valia e pelo lucro, o grande entupimento, o grande excedente, o sublime vómito ou a mega caganeira simbólica de tudo o que foi inventado e que se tornou desnecessário e que será apenas uma tremenda corrente de lixo num planeta deserto de gente, mas habitado pelos novos colonos - os gentis e ultra-trabalhadores e trémulos luminescentes recém-chegados fogos-fátuos!

Sim, porque por aqui neste doce planeta, meu querido Extraterrestre, os capitais investidos, ou em dívida, na sua voracidade por trabalho extra, por criar lucro ou por pagar o juro da dívida entretanto contraída em tantos países à beira da bancarrota e onde as novas gerações nascem, como os antigos escravos, com a grilheta nos pés, por aqui no suave planeta Terra os capitais são como enormes monstros antropofágicos que se encarregam de devorar os homens, sugando as forças de trabalho nem que seja à custa da duração da vida do trabalhador, e, estando ele com o pensamento entorpecido, seja pelo cansaço, seja pela fome, pelo açúcar ou pelo excesso de informação, alucinam de tal forma a sua humana tendência para desejar que depois a única coisa que ele consegue fazer mesmo após trabalhar até ao limite das suas forças é consumir agonicamente os produtos que o capital precisa de escoar, ainda que sejam inúteis, ridículos, encarecidos ou em excesso. Daí que hoje em dia se produza, para o mesmo produto, o modelo número um, o modelo número dois, o modelo número três... Por exemplo, um telefone um, um telefone dois, um telefone três... E os novos humanos são como ratos que correm em rodas, com os olhos fixos nestas novas jóias, tal como um burro que carrega o fardo na mira da cenoura que tem à frente do nariz.

Você mesmo poderá ver com os seus olhos ou outro órgão que lhe sirva para tal, quando aterrar no nosso maravilhoso e azul planeta, a enorme cabeça do capital poisada no mundo, de boca aberta e escancancarada, como um enorme vulcão. Mal você chegar à Terra, garanto-lhe, será isto a primeira coisa que verá - uma enorme cabeça - porque o capital é só cabeça, uma cabeça e um cu, em ligação directa, totalmente eficaz!...

A língua que sai da boca aberta, colada ao chão, é a enorme rampa por onde seguem todos os seres humanos em fila, uns atrás dos outros. Uns vão de fato e gravata, bem vestidos, com os canudos da universidade na mão, e outros vão descalços, de mãos vazias e amarradas. Uns vão de barriga cheia e outros vão de estômago vazio; uns vão risonhos e outros em lágrimas; mas todos descem pela mesma garganta.

Aí vão eles!...

E saem todos pelo mesmo ânus, pela mesma enorme cloaca do capital. 

Uns saem de sapatos novos e outros a mastigar. Outros vão ao volante de um Ferrari. Há quem traga apenas mais uma nódoa negra no corpo. Um buraco de bala na testa. Um rasgão na alma. 

No fundo, todos fazem o mesmo caminho, meu querido fogo-fátuo, nem mais, nem menos.

Comidos - e cagados - pelo sublime capital. 


Charles Chaplin, «Tempos Modernos», 1936