Segundo Intervalo


 
 
Falei-lhe, meu querido e paciente, meu compassivo leitor, nesta era faustosa do capitalismo global, nesta era em que alguns de nós vivemos sobre rodas, rodeados do maior conforto, deslocando-nos com suavidade e elegância em sofás dentro dos nossos carros brilhantes, tomando duche de água quente, todos os dias, em casas arejadas, claras, bem decoradas, e em cidades limpas, asfaltadas e iluminadas, que de noite acendem os céus, como fogueiras ou como naves extraordinárias, e que lançam a luz bem longe, como estrelas - nesta era dourada dos milhões e dos números que transcendem a imaginação comum, falei-lhe, meu querido e paciente leitor, da tragédia das mulheres e das meninas na República Democrática do Congo. Da carnificina em nome de Deus, em pleno século XXI, perpetrada pelo Estado Islâmico. Do casamento infantil no Novo Sudão. Dos crimes de honra no Paquistão, contra as mulheres. Do tráfico humano no mercado negro global, por um lado, e da exploração legal mas infame do trabalho, por outro. Das crianças que matam. Das raparigas na Índia. Da cobiça que governa o mundo e dos objectos que mandam nos homens e que são como mesas que levantam as pernas e dançam com uma alma independente. Falei-lhe da Arábia Saudita, o reino do petróleo a quem fazem vénias os ministros dos países da liberdade, dos direitos humanos, mesmo quando os seus chefes mandam decapitar no fio do sabre, e num só dia, mais de uma dezena de homens cujo crime foi apenas falar. Foi o caso de François Hollande, ministro de França, condecorando Ibn Naif com a Legião de Honra. Falei-lhe das armas requintadas que se inventam e das espantosas tecnologias que são desenvolvidas apenas para destruir os países e os povos. E do desespero dos que se afligem diante de um tal espectáculo, sem nenhum tipo de consolação, sem nenhum Deus.
 
Ainda falta muito, meu querido leitor, o fim desta obra ainda vai longe. Caminhamos um pouco ao acaso. Há muito que dizer, quando talvez fosse preciso gritar - ou inventar o grito que estoirasse para sempre com as almas dos criminosos, que lhes desse cabo da rude cegueira.
 
Teremos forças?

De olhos bem abertos. Continuemos.

Vamos falar do ano de 2015, tão perto ainda.

Porque, como lhe disse, há que saber ou pelo menos especular porque é que do infinito e do alto das estrelas tantos sóis e planetas vivos nos contemplam sem que um só se digne a contactar-nos, a nós, os notáveis humanos, com a urgência que naturalmente se impõe.