Os sensíveis sem fé, como viveremos?



Há quem conheça o sofrimento como quem vê animais num jardim zoológico. Há quem esteja quase sempre bem disposto ou, no mínimo, permaneça indiferente. Há quem acredite que a sua saúde mental se mede por níveis de felicidade e de bem estar (e não por uma capacidade de ser afectado ou de sentir) e há quem consiga, inclusivamente, fazer de uma visita a animais enclausurados um acto de lazer e se faça ainda para mais acompanhar, nessa tenebrosa actividade, por crianças.
 
Assim são os homens, desde cedo, treinados para a brutalidade.
 
A uns, o sofrimento curtiu de tal forma que os tornou indiferentes. Outros vislumbram-no apenas como quem vê os quartos numa casa em que se entra de visita. Ainda não chegou a sua hora. Há quem passe insensivelmente para a loucura, quem se anestesie, quem se destrua. Felizes os loucos, que já cá não estão. E há uma rudeza rasteira nos que permanecem imunes. Há quem simplesmente tente ser normal e se contente com a mediocridade, com os bens, ou com o que imagina ser a opinião dos outros. Aliás, uma curiosa forma de ficção involuntária, e afim de certos processos de demência, «a opinião dos outros». A outros, porventura mais audazes, o sofrimento transforma nos algozes do sofrimento alheio, o que talvez lhes traga o perverso alívio de conquistar poder onde antes foram dramaticamente impotentes. Quem sabe? A cobardia de todos abre espaço ao terror, ao infinito espaço da crueldade incompreendida mas sempre constante dos humanos.
 
O sofrimento tem infinitos modos. Desde a privação até à injustiça, passando pela mentira, pela tortura, pela maledicência e até pela solidão. Mas não há variante de sofrimento que não seja ensaiada na carne, que não venha a doer na radiculada franja da nossa alma - nos nervos que ligam a carne à dor, como fios eléctricos.
 
O sofrimento arbitrário, inútil, tremendo e insuperável dos animais e dos homens a alguns de nós dói-nos ao ponto de nos fazer balançar entre a vida e a morte.
 
Espinosa respondeu. E a sua resposta é uma consolação para aqueles que possam acreditar no seu Deus - a substância eterna e infinita de infinitos modos e atributos, composta de infinitas essências que só podem ser destruídas como modos, nunca como essências.
 
Destes infinitos atributos, nós, os humanos, míopes e enterrados como toupeiras, só conhecemos dois: o pensamento e a extensão, ou, por outras palavras, o pensamento, o espaço e o tempo. O que será o resto? É por via dos afectos que o corpo ressoa o infinito. É pela capacidade de ser afectada que a alma vibra em sintonia com o que não vê nem percebe e não alcança, mas vive. Cada coisa é um modo, cada corpo é um modo, cada acontecimento singular é um modo.
 
Cosmos infinito que é mais que espaço e tempo, mais que alma e pensamento, mais que matéria ou luz e de cujas nebulosas vistas ao longe as poeiras brancas e rosas compõem o hino sublime e intensivo que nos arde nos olhos e canta nas almas, em ti a menina violada e metida num saco do lixo permanece como um malmequer à espera de uma outra chance de existir, intocável na sua pureza, na sua lisura e no esplendor imanente que um dia se viu na face, na macieza dos cabelos, no brilho do corpo e na ligeireza do riso.
 
Mas entretanto nós, os sensíveis sem fé, como viveremos?