A Carta do Extraterrestre

 


 
«Meu caríssimo e honrado escritor,
 
Neste momento é caso para dizer, à boa maneira popular e humana:

"ALTO E PÁRA O BAILE."
 
Chega. Não há paciência para que alcancemos, com uma prosa oitocentista e barroca, o limite de uma tal incoerência.
 
Você tem contado até agora com a minha alma impoluta e supra-terrena para o acompanhar nas suas digressões que são um misto de inocência, intervencionismo, ingenuidade e rudimentar moralismo. E eu, confesso, de boa-vontade o tenho seguido, ainda que não saiba porquê. Você tem contado com a minha inteligência alienígena e mil vezes avançada em relação à sua para sorrir com alguma complacência da sua dificuldade em imaginar o conteúdo de números superiores a um milhão. Tem contado com a minha paciência, com o meu interesse, com a minha dedicação e até com a minha sonolência. Tem contado, e nunca é demais sublinhá-lo, nunca, nunca, mas nunca é demais sublinhá-lo, com o meu humor absolutamente extraterrestre para conseguir encontrar-lhe, a si, um escritor que nem sequer sabe como escrever para os seus parentes humanos, alguma graça. E mais. Tem até contado com uma inteligência supra-nominal e supra-transcendental para poder ler e escrever numa das inúmeras e obscuras línguas do seu babélico planeta, o português. Não tenho desejo de o conhecer, é certo, nem a si, nem aos seus sanguinários conterrâneos. Seria até perigoso para a minha pele extra-terrena mais suave e delicada que qualquer coisa que vocês, os humanos, possam imaginar, e quase transparente, enveredar por uma tal aventura incauta. Mas, francamente, é demais que agora se ponha a falar de «um mesmo e comum mosaico de sonhos», a propósito dos sete mil milhões de habitantes que se reproduzem num tão nefasto e insuportável planeta. É agora que esta infame raça de humanos começa a sonhar de forma comunitária? Já basta de paradoxos que são simplesmente inúteis pela sua grosseria e vulgaridade. Basta. Dou-me ao trabalho de lhe escrever numa língua que para si seria ainda mais difícil que o mandarim só para lhe explicar que um paradoxo, a ser utilizado, é com o mais sagrado respeito e para obrigar o pensamento a dar um salto. E você sabe o que isso é? - Não sabe. Nem sequer existe na sua língua um conceito equivalente para o que eu aqui sou forçado a traduzir grosseiramente por «sagrado respeito». Pode parecer-lhe que o meu discurso é arrogante, mas eu estou profundamente escandalizado, estou profunda e completamente escandalizado, de um modo que me tira as forças e que me deixa desfeito, arruinado, debilitado... E mais. Vocês também não têm conceito para esta tradução de novo grosseira, rude, repelente, imprópria e débil - «Escandalizado»!... Ah!... São de uma miopia insuportável!... Vêem tudo desfocado!...

Sagrado respeito... É qualquer coisa que não vacila nem se distorce quando passa da intenção para a acção. É inabalável. Não treme. Não claudica, como toda a vossa bondade. O que eu sou forçado a traduzir por sagrado tem uma tal força que não cede às mudanças de ideias, não se questiona, e é imune a qualquer forma de destruição. E você, que eu já fintei, sofre precisamente dessa doença que o obriga a começar muitas vezes de novo, muitas vezes, muitas vezes, até que quando por fim exausto por uma tal travessia e velho de todo o tempo que gastou a empreendê-la você venha a tombar na praia da sua mortal debilidade, às portas de uma individual e mais que certa finitude. Não posso, não posso admitir que você use um paradoxo desta forma. Sabe o que é obrigar o pensamento a dar um salto? Mudá-lo para um plano que não tenha nada, mas nada, a ver com o seu? Não basta usar o aparelho crítico, destruir ilusões, ideias feitas, lugares-comuns e outras comodidades. Essa parte é fácil, comparada com o resto... Perder tudo é fácil, comparado com o resto... Içar-se a uma outra luz... É essa a única função que permite tolerar o paradoxo, que não é para usar assim, de um modo leviano. Se insiste em falar de loucos, de assassinos, de ladrões, de déspotas, de tiranos, de cobardes, de cobiçosos e de invejosos e de fúteis que trocam a sua alma e a dos filhos pelo púrpura de um tapete miserável ou pelo brilho de uma reles túnica que apenas servirá para cobrir os seus esqueletos quando forem enterrados, não venha falar-me de um «mosaico de sonhos em comum», quando insiste em descrever uma tal multidão de bestas.

Lamento, mas, de uma vez por todas, terei de abandoná-lo.

 
 
Assina quem já foi seu,
 
um destroçado Extraterrestre.»