Ashraf Fayadh






Meu querido leitor extraterrestre, trago-o de novo para a Arábia Saudita, a terra seca dos príncipes do petróleo e das mulheres amordaçadas, a coroa da abundância material, dos palácios em quadriplicado e do alto luxo, cúpula de um império de tolos que é um planeta tão apetecível para si - o planeta Terra! - para si o extra-terreno que não compreende o valor do mais famoso de todos os nossos bens actuais, isto é - do dinheiro.

Não leve a mal a amargura deste humor. Há pelo menos uma razão pela qual até mesmo você gostaria de visitar este império dos tolos, mais não fosse como turista.

Por causa de certas palavras, por causa de uma coisa que se pode chamar «poesia»; por causa, acima de tudo, de uma coisa que tem várias faces, várias arestas, diferentes modos ou expressões (pode surgir como filosofia, como crítica, como arte), mas que se resume numa só actividade: pensar; talvez por causa disto você se digne a contactar-nos, almejado e formoso extraterrestre.

As palavras que nos fazem pensar incomodam, cortam o ar, passam de mão em mão e penetram nos estômagos, nos ossos e na bílis.

As palavras não deixam pedra sobre pedra do status quo, das manhas e tretas que nos querem vender, com que nos querem comprar as almas e surripiar as forças, o tempo de vida.

Elas arrasam com os preconceitos, com as ideias feitas, com as identidadezinhas que são úteis à reprodução social e à conservação de sociedades sempre iguais a si mesmas, sempre com os mesmos fortes e os mesmos fracos, sempre com o mesmo bem e o mesmo mal.

As palavras despem, dóiem, arrepiam e transformam, pela raiz, a alma dos homens.

Por isso é que os tiranos abominam os pensadores, os poetas e os artistas. Só querem as palavras sob o modelo da propaganda, ainda que isso já não sejam mais as palavras verdadeiras, sentidas, cuspidas, alegres ou doridas, não sejam mais palavras de corpo, mas as armas químicas, os venenos tóxicos que infectam a alma e o desejo dos súbditos, analgésicos camuflados de palavras, drogas incipientes que vão paralisando as emoções e o espírito, esclerosando, cartilagem por cartilagem, osso por osso, linha por linha, ideia por ideia, todas as articulações do pensamento.

As palavras são gestos, corpos, toques, danças, rostos, afectos que te abalam como carícias ou pontapés.

Qualquer totalitarismo vive de queimar os livros e de fazer arder em fogueiras os livres pensadores. Qualquer tirano depende de subjugar as almas pelo silêncio e pelo medo e pela renúncia às palavras.

As palavras verdadeiras são afectos vivos e pensamentos vivos que se trocam e que nos podem mudar, mudar de um modo radical, absoluto, e fazer atravessar até a própria morte.

Não é mentira. De tal ordem é o seu poder que o rei saudita não se coibiu de condenar à morte por decapitação o jovem poeta palestiniano Ashraf Fayadh, julgando-o sem sequer lhe conceder um advogado, à revelia das leis do próprio país.

De que é acusado? De «ateísmo», de «pensamentos destrutivos»? Se estivesse calado - não seria acusado de nada.
 
OPORTUNIDADES IGUAIS 

Um filho e uma filha.
 A mãe prefere o filho à filha.
 O filho permanecerá junto da sua mãe através das vicissitudes da vida.
A filha produzirá um outro filho para ficar do seu lado. (1)

 
O que é insuportável, neste poema? A impávida ironia do título? O insalubridade dos factos? A imobilidade da reprodução social? O absurdo de uma lógica pouco salvífica? Ou chegar a dizer, como num outro poema, que o petróleo vale mais que o sangue dos povos? 

Depois de quarenta e sete execuções no início de 2016, entre as quais a do chefe religioso Nimr al-Nimr, a diplomacia económica e política continua a rastejar diante do ouro negro.

Meu querido leitor extraterrestre, a quem apenas num aparente contra-senso me dirijo (porque apesar de expor aqui com a máxima clareza possível as razões porque não somos, de facto, contactados por extraterrestres, mesmo assim não deixo de sonhar com as almas de um mundo distinto e exclusivamente fundado na bondade e no escrúpulo).

Você sabe que tenho citado essencialmente Kant, Monthy Python, Karl Marx e Charles Chaplin, não é verdade?

Pois bem. Agora vou citar Proust quando sublinha que «nas nossas condições de vida neste mundo não há nenhuma razão para que nos julguemos obrigados a fazer o bem, a ser delicados, mesmo a ser corteses, nem para que o artista ateu se julgue obrigado a recomeçar vinte vezes uma obra quando a admiração que ela virá a provocar pouca importância terá para o seu corpo comido pelos vermes».

Proust na verdade quer chegar à fina conclusão de que morrer sem ficar morto para sempre não é uma coisa assim tão improvável, como se a morte não tivesse o carácter definitivo que os materialistas em geral lhe reconhecem.

Porém, o que Proust acaba por frisar, e de um modo extraordinário, é que «todas estas obrigações, que não são sancionadas na vida presente, parecem pertencer a um mundo distinto, fundado na bondade, no escrúpulo, no sacrifício, num mundo completamente diverso deste, e do qual saímos para nascer nesta terra, porventura antes de para lá voltarmos para tornarmos a viver sob o império dessas leis desconhecidas a que obedecemos porque trazíamos em nós o seu ensinamento, sem sabermos quem nele as havia traçado: essas leis de que nos aproxima todo o trabalho profundo da inteligência e que apenas são invisíveis - se o são! - para os tolos.»

O que nos faz reflectir sobre o triste facto de como o planeta Terra sempre esteve e tem estado cada vez mais sob o império dos tolos.



(1) http://arablit.org/2016/01/11/newly-translated-poems-to-read-for-ashraf-fayadh-on-january-14/