Sobre o valor instrutivo de um episódio com colher de pau




Nada há de mais curioso e possivelmente de mais repelente para o nosso querido Extraterrestre do que um peculiar aspecto da lógica do desejo humano - chamemos-lhe 
anti-lógica do desejo humano (o que talvez nos deixe escapar por um triz à nossa fatídica incoerência).

Comecemos por uma pequena e singela história, um mínimo exemplo.

Era uma vez uma menina de quatro anos que decidiu que não queria levar os seus brinquedos para a praia.

A menina era uma dessas crianças privilegiadas que têm centenas de brinquedos, sem porventura terem outras coisas que lhes fariam mais falta.

Nem baldes, nem pás, nem moinhos de água, nem redes, nem formas de areia, nem óculos de mergulho, nem bóias, nem patos, nem piscinas, nem bolas, nem barbatanas, a menina não quis nada excepto uma enorme colher de pau, uma enorme colher de pau com pelo menos cinquenta centímetros de comprimento e que era usada para mexer as compotas num enorme panelão.

E assim foi.

A menina foi para a praia com a colher de pau sobre o ombro direito, como se fosse uma picareta.

Na verdade, a menina sentia-se incrivelmente feliz e triunfante, com aquela enorme colher de pau. Toda ela exalava felicidade e orgulho.

Mas a sua alegria durou pouco.

Talvez porque se mostrasse tão contente, ou talvez porque aquela fosse a única colher de pau de toda a praia, foi num abrir e fechar de olhos que a subitamente famosa colher de pau se tornou alvo da cobiça e da rapina de todas as crianças, obrigando a família a uma saída precipitada.

A história foi considerada tão divertida que foi repetida ao longo dos anos, mas o que não deixa de ser realmente notável é como se pode encontrar, numa pequena história tão curta e tão singela, dois elementos fundamentais para a nossa anti-lógica do desejo. 

É que os objectos de desejo são muito menos importantes do que a alegria triunfante exibida por aqueles que os possuem e, a par com este facto, a raridade da oferta e por vezes a dificuldade momentânea da aquisição potenciam o desejo, daí que se possa convencer os seres humanos com menos de nada ou com imagens ardilosas e grosseiras a comprar e a desejar coisas de que não têm qualquer necessidade, como se essas coisas fossem o segredo da sua potencial alegria, e assim há muitos que trabalham e trocam a vida por essas coisas que lhes parecem sobejamente interessantes e porque na verdade foram alvo da manipulação de um instinto tão básico que não lhes aflora esse campo restrito e difícil a que nós, os humanos, tanto gostamos de chamar «consciência».

Enquanto um grupo de humanos «deseja» (ainda que neste caso particular o termo mais rigoroso fosse «cobiça», para não estragar o valor positivo que a actividade de desejar em geral também tem), há sempre um outro grupo que «enriquece».

Pobres dos ocidentais que no tempo da expansão e da colonização foram capazes de zombetar dos selvagens porque trocavam escravos e prisioneiros por contas de vidro, enquanto eles próprios trocavam a vida por pedregulhos de ouro!

Os elementos de cada um dos grupos não escapam a uma predação alternada, porque estão presos numa mesma mecânica, numa mesma máquina. O seu desejo foi capturado por um sistema maior, que se alimenta dele, não como a rapina das crianças da praia se alimentou da visão da portadora feliz da colher de pau, o que seria quase cândido, mas como um parasita que, sorvendo uma outra vida, acabará por colapsar em conjunto com ela.

Você, meu caro Extraterrestre, deve sentir-se tão intimamente repelido com esta nossa actual condição que não quererá sequer aproximar-se, quanto mais contactar-nos.

É o mais certo.