A velha usura e os novos escravos



A usura é dos procedimentos humanos mais antigos, desde que se inventou a moeda, ou o dinheiro.

É realmente fantástico, meu caro Extraterrestre, que o poder da abstracção humana tenha atingido aquele ponto em que deixámos de trocar serviços por bens ou por outros serviços e passámos a fazer as trocas que são salutares e imprescindíveis para a nossa felicidade e sobrevivência por meio de um símbolo abstracto do valor, isto é, um número. 

Podemos traduzi-lo em ouro, botões, contas de vidro ou papelinhos, pouco interessa. O que nos interessa a nós em particular neste momento é observar como, a partir do momento em que se criou tal facilidade (porque seria uma dificuldade, se eu precisasse dos seus feijões, e tivesse apenas vacas para a troca, e você precisasse, pelo contrário, de lã, seria uma real dificuldade estabelecer entre nós uma relação de comércio), estava eu a dizer, a partir do momento em que se criou uma tal facilidade, logo pululou por todo o lado uma espécie bastante comum de oportunistas que se caracteriza por uma rápida e básica esperteza dirigida a tudo o que é concreto e imediato e quase total ausência de escrúpulos, raciocínio moral ou visão a longo prazo, espécie resiliente, esta, que se dedica a armazenar esses símbolos abstractos, sejam eles ouro, botões, contas de vidro, ou papelinhos, pouco interessa, e a vendê-los a quem deles precise por um valor a que comummente se chama juro e que por sua vez resulta no retorno de todo o ouro, botões, contas de vidro ou papelinhos emprestados a que se soma uma percentagem variável de mais ouro, botões, contas de vidro ou papelinhos, pouco interessa.

Perguntará você, meu querido e inocente Extraterrestre, para que querem as gentes tanto ouro, botões, contas de vidro ou papelinhos?

Só lhe posso dizer que deve ser para forrarem os caixões, no dia em que forem enterrados!

Vivemos nos tempos que correm uma tal desordem económica e política que hoje em dia tanto faz que o cidadão comum leve uma vida sóbria e simples, ou não. Por ele e no seu lugar endividaram-se os próprios governos de cada país que, chicoteados pelas costas e mordidos nas canelas pela máquina financeira que esconde o verdadeiro rosto desta multidão de usurários e bestas internacionais, sugam aos cidadãos até à última gota do valor do seu trabalho, como faziam os antigos senhores feudais endividados aos seus escravos e servos.

Já dizia Marx:

«Enquanto reinar a escravatura, enquanto o sobreproduto for consumido pelo senhor feudal e seu séquito, e proprietários de escravos ou senhores feudais forem presa dos usurários, o modo de produção continuará a ser o mesmo; simplesmente, tornar-se-à mais duro para os trabalhadores. O proprietário de escravos, ou o senhor feudal, endividados, oprimirão ainda mais os seus súbditos na medida em que eles próprios forem oprimidos. Ou ainda, acabam por abrir caminho aos usurários, que se tornam, eles próprios, proprietários ou possuidores de escravos, tais como os cavaleiros da antiga Roma. Os antigos exploradores, cuja exploração era mais ou menos patriarcal, porque era em grande parte um meio de poder político, foram substituídos por oportunistas duros e cobiçosos. Mas o modo de produção não foi modificado em si.» (1)

Hoje em dia chegámos ao ponto em que Estados ditos democráticos e eleitos por sufrágio universal fazem as vezes dos antigos proprietários de escravos e senhores feudais. Agora são os povos inteiros aos milhões que ocupam o lugar dos antigos oprimidos, e os novos escravos nem sequer sabem quem é o seu novo senhor!... Mas houve progressos, meu querido Extraterrestre. Os novos escravos têm mais do que uma capa para cobrir o corpo - e mais do que uma enxerga em que se deitar. Não se lhes pode bater. Têm direito à palavra e não podem ser explorados de sol a sol, sem intervalo. Muito sangue correu para que se conquistassem estes direitos, que é como lhes chamam. Mas os novos escravos vêem-se encurralados nas tramas subtis de outras leis que lhes confiscam a paz, o tempo livre e a esperança, ou mesmo a capacidade para pensar, o que talvez permitisse que se defendessem (mas não é certo).


Quentin Metsys (1514)









(1) Marx, O Capital, Cap. XXXVII «Notas sobre o período pré-capitalista», p. 521.