Um pouco mais de morte ou de penumbra



Estamos em Junho de 2016. 

Uma mãe atirou-se do alto de uma ponte sobre o rio Cávado com o filho de seis anos ao cólo. Por um acaso, a mãe foi resgatada, enquanto o filho morria. Há poucos meses aconteceu o mesmo em Caxias. Uma mãe entrou nas águas geladas do rio com as duas filhas, uma ainda quase bebé e a outra de quatro anos. Ambas morriam enquanto a mãe, arrependida, saía das águas e chamava por elas.

Quantos pensamentos cabem em cinco segundos? Quantas imagens? Que arrependimento? Que medo? Poderemos sentir a separação dos corpos, o embate violento nas águas geladas, que nos entram pela boca? Poderemos algum dia pensar no intervalo de tempo entre a dor e a morte, entre a luta e a rendição?

Pensar é insuportável. Não temos mais lágrimas para chorar. Quando se chora muito, e todos o sabem, o crânio estala. É possível que se abram imperceptíveis fissuras nesses ossos lisos e é possível que se escape por aí uma parte da nossa alma ou que entre por aí um pouco mais de morte ou de penumbra. Num parque de diversões, um jacaré leva uma criança. Numa discoteca gay em Orlando, um maníaco dispara sobre trezentas pessoas. As milícias de Boko Haram matam de uma rajada vinte e quatro mulheres. Um louco esfaqueia e dispara sobre Jo Cox em plena rua. Um leão devora uma gazela. Um Tsunami arrasa uma cidade. Uma vespa morre entalada na porta. Um homicida escapa impune, depois de embrulhar uma menina num saco de lixo. Num estúpido acidente de carro, a carne dos mortos e dos feridos mistura-se com a chapa.

Nós os humanos não só vivemos num mundo em «que a vida sobrevive à custa da morte» (1), mas, mais ainda, meu querido Extraterrestre, vivemos num mundo em que deflagra um excesso gratuito de absurdo. Na verdade, um absurdo inútil, totalmente desnecessário, irrelevante. Meu querido Extraterrestre, no seu mundo todos os seres se devoram uns outros, numa cadeia de crueldade infinita? E Deus a tudo assiste sem interferir? As hienas também esperam que os leões saciem a fome, para comer os restos? E os cães e os gatos também andam abandonados pelas ruas das cidades, coxeando?

Pensar é insuportável. Dêem-nos antes duas garrafas de Vodka puro, com a mais elevada percentagem de álcool, e, se não for ilegal, dêem-nos absinto e deixem-nos desmaiar e retroceder à sensibilidade primeva de um molusco, que é melhor beber até ficar cego, amorfo e inconsciente do que viver num tal mundo, não concorda?


Polaroid de Andrei Tarkovsky no livro Instant Light: Tarkovsky Polaroids from Thames and Hudson




(1) Frederico Lourenço, post de 18/6/2016 (FB).