Advertência pré-preambular



Caríssimo leitor, antes ainda de iniciarmos a inevitável discussão preambular sobre a utilidade de uma tal questão - isto é, saber porque é que não somos, de facto, contactados por extraterrestres - sugiro-lhe, como um método para se imbuir do espírito desta obra peculiar, que pense durante alguns segundos em formigas.
 
Será que por acaso nós, os da raça humana, contactamos ou nos interessamos por contactar, de facto, as formigas?
 
Esta expressão, «contactar de facto», tem, é claro, muito que se lhe diga. Mas peço-lhe, excelente e exultante leitor, que prescinda um pouco do seu precioso tempo para pensar seriamente em formigas.
 
As formigas constroem cidades, armazenam comida, respeitam uma hierarquia, enterram os seus mortos - o que, de acordo com inúmeros arqueológos, é uma marca civilizacional da humanidade -, comunicam quimicamente entre si através de antenas e movem-se por caminhos pré-traçados, chegando mesmo a deslocar-se em trânsito congestionado, apesar do espaço livre que parece existir fora desses caminhos - aliás, exactamente como nós, que circulamos enfileirados nas grandes autoestradas, no meio de tanto campo em redor.
 
Ora, interessamo-nos por acaso nós em organizar e subsidiar sérias e massivas investigações científicas no sentido de descobrir um modelo funcional e compreensível para a comunicação química das formigas, como se afinal deste delirante problema adviesse uma situação de vida ou de morte, porventura uma prioridade para a estratégia e para os programas políticos nacionais e internacionais?
 
Aliás, quando se aproximam muito dos nossos lares, multiplicando-se em número elevado, que fazemos nós com as refinadas, com as delicadas e avançadas formigas?
 
Varremo-las, espezinhamo-las, envenenamo-las, aspiramo-las, afogamo-las ou matamo-las de uma outra qualquer forma igualmente eficaz e indiferente.
 
Na verdade, qualquer afecto que sintamos por um tal animal é, em grande medida, teórico, e envolve uma peculiar especulação moral que permite pensar este mundo e todas as suas criaturas como coisas/obras/essências de um deus incompreensível, mas, ainda assim, infinitamente bom.
 
Contudo, este afecto especulativo desaparecerá completamente e sem deixar qualquer espécie de rasto no caso de acontecer que alguém seja picado numa perna ou num qualquer outro sítio do seu honorável corpo sensível, por formigas.
 
E isto muito especialmente se tais formigas surgirem de um modo repentino, isto é, como quem diz, «do nada», ou em número elevado.
 
E nem sequer precisamos de recordar o modo como certos povos primitivos da África subsariana condenavam à morte as mulheres adúlteras, cobrindo-as com mel e colocando-as em buracos onde dolorosa e lentamente seriam devoradas por formigas, apesar de todos os gritos que as suas forças lhes permitissem emitir.
 
É caso para dizer que numa tal situação toda a anterior ternura teórica se esfuma como uma memória incerta, ou como uma miragem no deserto, ou ainda menos que isso, como o vapor de uma ínfima gota de orvalho num ferro escaldante.
 
É em tais momentos de sofrimento e de horror que o instinto assassino se impõe, o que explica, por exemplo, que as nossas antecipações de possíveis contactos com extraterrestres oscilem entre os dois polos absolutamente incompatíveis do desejo e do terror.
 
É caso para pensar e reflectir: no fundo, que haveremos nós de fazer com semelhantes criaturas?
 
Decida você mesmo, caríssimo e inteligente leitor, no final da leitura deste blogue, quando e em que circunstâncias realmente lhe falei de formigas, de extraterráqueos ou de membros inadvertidos de uma espécie incompreensível, isto é - de nós, daqueles a quem tantas e repetidas vezes chamam humanidade.