Estaremos, de facto, sós?


Não é necessário recordarmo-nos que o número de planetas extra-solares não cessa de aumentar, desde que os cientistas afinaram os seus métodos de detecção remota da presença gravitacional dos corpos celestes.

Não é sequer preciso lembrar que a Sonda Kepler só até Dezembro de 2012 encontrou já mais de onze mil estrelas e dezoito mil planetas.

Basta pensar que o nosso sol é apenas uma estrela entre os duzentos ou quatrocentos bilhões de estrelas da Via Láctea, e que a nossa galáxia é apenas uma de entre cento e setenta bilhões de galáxias no universo observável, e que cada galáxia possui milhões ou biliões de estrelas, e que existem até as galáxias gigantes, que chegam a possuir cem triliões de estrelas.

Você consegue imaginar um número como cem triliões, sem reduzi-lo a uma qualquer percentagem?

Se é verdade que desde Copérnico perdemos o centro do universo e o topo da hierarquia dos seres na escala da criação divina, a verdade é que desde os avanços fulminantes da ciência e da tecnologia e da exploração do espaço no século XX conquistámos as mais pueris periferias e os mais singelos arrabaldes de uma entre milhões de galáxias e que não é mais que um ínfimo grão de poeira no meio da desmesurada luz incrível de um incomensurável universo.

É caso para perguntar - Estaremos, de facto, sós?

Uma ponderosa questão

 
Mesmo que não alcancemos qualquer acordo no que diga respeito a mais coisa nenhuma, havemos porém de concordar num ponto que será, se não do senso comum, pelo menos consensual.
 
Quero com isto dizer que havemos de pelo menos concordar, ainda que não cheguemos a ficar de acordo quanto a conceitos como «animal», «espécie», «vida», «humanidade» ou «barbárie», que o tempo é um dos bens mais preciosos que temos (sem excluir, como é evidente, a saúde geral que é necessária para gozá-lo), razão pela qual assentirá, meu caro leitor, em que não valerá a pena perdê-lo com questões inúteis.
 
Sendo assim, se saber porque é que os extraterrestres não nos contactam é ou não é mais uma dessas fúteis questiúnculas que nos desviam do nosso propósito primordial, o qual consiste muito simplesmente em disfrutar a nossa vida ao máximo, essa é uma ponderosa questão preambular que deve desde já ficar resolvida de uma vez por todas.
 
É com certeza do seu conhecimento, meu ilustre e culto leitor, que a vida extraterrestre tem ocupado mentes tão absolutamente díspares que na realidade poderiam preencher de um extremo ao outro a distância de um vasto expectro que começaria com Giordano Bruno, no século XVI, passaria por Jill Tarter, líder do SETI («Search for extraterrestrial intelligence»), já no século XX, e terminaria com Eugénio Siragusa, ainda no  século XX, um homem visionário que, segundo as suas palavras, foi «chamado» a meio da noite para uma longa caminhada ao longo do vulcão Edna, local onde encontrou os brancos anjos de uma Nova Era e foi ungido com um raio verde de uma tecnologia não terrestre, que o acalmou.

Ora, o que é certo, indiscutível, irrevogável e irrecusável é que, desde Copérnico, quando o universo deixou de girar à volta da terra e esta passou a ser um mero satélite do sol, e desde Giordano Bruno, que escreveu «Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos», nada voltou a ser como antes, e o pensamento humano sofreu um tal golpe que a partir daí talvez devêssemos deixar de o qualificar com um tal adjectivo - «humano».
 
Portanto, há que saber ou pelo menos especular, para alívio ainda que temporário das sangrentas e escaldantes esporas da nossa insaciável razão pura, faculdade essa que podemos com justiça descrever, não como uma senhora, mas como um louco cavaleiro que nos obriga a correr desenfreadamente pelas estepes e pelos desertos dos nossos dramas íntimos e delírios colectivos, estava eu a dizer - há que saber ou pelo menos especular porque é que do infinito e do alto das estrelas tantos milhões e triliões e zilhões de anos e tempos incomensuráveis e tantos sóis e planetas vivos nos contemplam, sem que um só, um apenas, um de entre milhares de milhões de triliões de zilhões se digne a contactar-nos, a nós, os notáveis humanos, com a urgência e a dignidade que naturalmente se impõe.

Posto isto, consideramos resolvida a ponderosa questão.
 


Advertência pré-preambular



Caríssimo leitor, antes ainda de iniciarmos a inevitável discussão preambular sobre a utilidade de uma tal questão - isto é, saber porque é que não somos, de facto, contactados por extraterrestres - sugiro-lhe, como um método para se imbuir do espírito desta obra peculiar, que pense durante alguns segundos em formigas.
 
Será que por acaso nós, os da raça humana, contactamos ou nos interessamos por contactar, de facto, as formigas?
 
Esta expressão, «contactar de facto», tem, é claro, muito que se lhe diga. Mas peço-lhe, excelente e exultante leitor, que prescinda um pouco do seu precioso tempo para pensar seriamente em formigas.
 
As formigas constroem cidades, armazenam comida, respeitam uma hierarquia, enterram os seus mortos - o que, de acordo com inúmeros arqueológos, é uma marca civilizacional da humanidade -, comunicam quimicamente entre si através de antenas e movem-se por caminhos pré-traçados, chegando mesmo a deslocar-se em trânsito congestionado, apesar do espaço livre que parece existir fora desses caminhos - aliás, exactamente como nós, que circulamos enfileirados nas grandes autoestradas, no meio de tanto campo em redor.
 
Ora, interessamo-nos por acaso nós em organizar e subsidiar sérias e massivas investigações científicas no sentido de descobrir um modelo funcional e compreensível para a comunicação química das formigas, como se afinal deste delirante problema adviesse uma situação de vida ou de morte, porventura uma prioridade para a estratégia e para os programas políticos nacionais e internacionais?
 
Aliás, quando se aproximam muito dos nossos lares, multiplicando-se em número elevado, que fazemos nós com as refinadas, com as delicadas e avançadas formigas?
 
Varremo-las, espezinhamo-las, envenenamo-las, aspiramo-las, afogamo-las ou matamo-las de uma outra qualquer forma igualmente eficaz e indiferente.
 
Na verdade, qualquer afecto que sintamos por um tal animal é, em grande medida, teórico, e envolve uma peculiar especulação moral que permite pensar este mundo e todas as suas criaturas como coisas/obras/essências de um deus incompreensível, mas, ainda assim, infinitamente bom.
 
Contudo, este afecto especulativo desaparecerá completamente e sem deixar qualquer espécie de rasto no caso de acontecer que alguém seja picado numa perna ou num qualquer outro sítio do seu honorável corpo sensível, por formigas.
 
E isto muito especialmente se tais formigas surgirem de um modo repentino, isto é, como quem diz, «do nada», ou em número elevado.
 
E nem sequer precisamos de recordar o modo como certos povos primitivos da África subsariana condenavam à morte as mulheres adúlteras, cobrindo-as com mel e colocando-as em buracos onde dolorosa e lentamente seriam devoradas por formigas, apesar de todos os gritos que as suas forças lhes permitissem emitir.
 
É caso para dizer que numa tal situação toda a anterior ternura teórica se esfuma como uma memória incerta, ou como uma miragem no deserto, ou ainda menos que isso, como o vapor de uma ínfima gota de orvalho num ferro escaldante.
 
É em tais momentos de sofrimento e de horror que o instinto assassino se impõe, o que explica, por exemplo, que as nossas antecipações de possíveis contactos com extraterrestres oscilem entre os dois polos absolutamente incompatíveis do desejo e do terror.
 
É caso para pensar e reflectir: no fundo, que haveremos nós de fazer com semelhantes criaturas?
 
Decida você mesmo, caríssimo e inteligente leitor, no final da leitura deste blogue, quando e em que circunstâncias realmente lhe falei de formigas, de extraterráqueos ou de membros inadvertidos de uma espécie incompreensível, isto é - de nós, daqueles a quem tantas e repetidas vezes chamam humanidade.