Eis 2015, o ano em que ainda decorrem as nossas
vidas, a minha, a sua e a de mais sete mil milhões de pessoas. Concordará que é
difícil imaginar um tal número, por um lado, mas que é fácil, por outro, imaginar o aspecto comum das franjas numerosas de um tal povo humano, com as suas
crianças, bebés, rapazes e raparigas, homens e mulheres, velhos, e, por todo o
lado, um semelhante mosaico de sonhos.
Nunca desde a Segunda Guerra Mundial se
testemunhou um tão grande número de pessoas deslocadas e em busca de refúgio, e
é por isso que queremos falar de 2015. São sessenta milhões de pessoas. Em
tendas, caminhando a pé, com crianças ao colo, arriscando a vida em
viagens perigosas, sem nada nas mãos. Por isso queremos falar desta humanidade
de agora mesmo - e de como o mundo sangra, mudo, esburacado, indiferente,
curvado e torturado.
Você poderá ter a sorte de escrever livremente
num blogue, sem que venham bater à sua porta e sem que registem o seu nome
numa lista negra, mas neste mundo de cento e noventa e três países, foram cento
e treze países os que limitaram ou restringiram arbitrariamente a liberdade de
expressão e a liberdade de imprensa. Mais de metade, portanto. Destes, sessenta
e um países colocaram na prisão pessoas que apenas exerceram os seus direitos e
liberdades.
Você poderá viver com
a paz nem sequer consciente de não ter medo que caia uma bomba em cima da
sua casa, sem o trauma de uma guerra perante a qual fosse impotente,
sem o terror de ficar vivo mas sem uma parte da sua alma ou do seu corpo, e sem a
experiência terrível do medo que, uma vez sentido, infiltra como um poderoso
veneno o futuro todo inteiro, e fura a medula dos ossos, e penetra até no
último reduto do sono, mas mais de trinta países forçaram ilegalmente
refugiados a regressar aos países onde corriam perigo.
Foi em 2015, agora mesmo. Diferentes grupos
armados cometeram abusos de direitos humanos em pelo menos trinta e seis
países. Crimes de guerra e outras violações das "leis de guerra"
foram cometidas e ficaram impunes em pelo menos dezanove países. Cento e vinte
e dois ou mais países torturaram ou cometeram outros maus tratos sobre pessoas
e pelo menos cento e cinquenta e seis defensores de direitos humanos morreram
em detenção ou foram mortos.
Parecem apenas números, mas todos eles reportam
uma história, uma vida, uma alma, um corpo, um feixe desgarrado de sonhos por
cumprir, e não só os que numeram, mas todas os outros que nem
chegaram ao estado da denúncia.
Não há nada tão absurdo e grotesco como o
sofrimento que a humanidade inflige a si própria. E sim, os direitos humanos,
mais que nunca, estão em risco. Foi por esta mesma ordem de razões que Espinoza, em
1665, teve de interromper a escrita da «Ética» para empreender a redacção do
«Tratado teológico-político». «Porque é que os povos são tão profundamente
irracionais? Porque é que honram a sua própria escravatura? Porque é que os
homens se batem pela sua escravatura como se fosse a sua liberdade? E porque é
que é tão difícil não só conquistar mas suportar a liberdade? Sim, porque é que
uma religião que se reclama do amor e da alegria inspira a guerra, a
intolerância, a malevolência, o ódio, a tristeza e os remorsos?» (1)
As perguntas de hoje são as mesmas, e sem
resposta.
(1) Gilles Deleuze, «Spinoza - Philosophie Pratique», p.17.