Suave e liberto,
o corpo arde, depois de dançar.
Soube de músculos que não tinha.
Experimentou novas dores.
Descobriu no espelho uma altivez inédita
e dissolveu no esforço muscular
e na concentração absorvente
o coração.
Sim, moeu-se grão a grão
essa angústia pungente de existir
e de amar sem nenhum futuro.
Moeu-se até ao líquido a angústia
e o coração e onde está
agora o coração?
Na suave paisagem noctívaga que se entrevê
dançante pelos vidros do carro
há essa coisa meio criança
de ter um interesse desprendido
e lúdico em todas as coisas.
Frieza. Neutralidade. Simples
infância abstracta de ver sem pensar.
Coisa livre e leve se evola
da estrada que gira
com seus traços brancos no fundo negro
suas mil luzes de paisagem imensa
mar obscuro, pequenos pilares riscados
postes, pontes, quadradinhos volantes
que são as luzes trazeiras dos carros
aparentes peças de lego
em tantos paralelepípedos móveis:
as novas paisagens do abstracto.
Arde, corpo, arde.
Dança até moeres o grão de toda a angústia.
Tudo o que sofreste de repente não faz sentido.
Há só esta coisa infantil,
esta neutra candura das cores volantes.
Talvez a vida.